Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual a origem e qual o significado das expressões idiomáticas «não poder com uma gata pelo rabo» e «bicho de sete cabeças».

Resposta:

Sobre a origem histórica, factual, das expressões em questão, é praticamente impossível dar informação, uma vez que as expressões idiomáticas, tal como os provérbios, são geralmente produto de criações anónimas que se generalizam no uso e se fixam na língua.

No entanto, a respeito de «bicho de sete cabeças», é possível falar da motivação cultural da expressão, como faz Orlando Neves, em Dicionário de Expressões Correntes (Editorial Notícias, 2000, p. p. 80):

«[a expressão] refere-se a grande dificuldade, grande problema cuja solução é problemática e custosa. Trata-se do designativo popular da "hidra de Lerna", o monstro que Hércules matou. Dragão ou serpente, vivia nos pântanos de Lerna, tinha sete cabeças que renasciam quando cortadas, enquanto não fossem decepadas de um só golpe. Esse foi um dos trabalhos de Hércules, que assim libertou Argélida do flagelo. Uma variante da história de Hércules existe no conto tradicional português A Bicha de Sete Cabeças, onde o filho de um sapateiro, amigo do príncipe real, mata tal monstro na noite de núpcias do herdeiro do trono. Só ele sabia da maldição que caía sobre a princesa. Obrigado a revelar esse segredo para não ser castigado pelo príncipe, ficou transformado em estátua de mármore nos jardins do palácio real.»

Quanto aos significados:

– «Não poder com uma gata pelo rabo» = «Estar exausto, sem força física» (cf. «não poder com um gato pelo rabo», in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, consultado em 21-11-2021]

– «(fazer/armar) um bicho de sete cabeças»: «(encontrar) grande dificuldade, em regra,...

Pergunta:

Palavras acabadas em io são às vezes pronunciadas sem o o final no Brasil, que soa [u].

Tal fenómeno se opera em Portugal?

Há um livro que vocês me poderiam indicar para eu ler acerca desses casos?

Muito obrigado!

Resposta:

Pode acontecer nos dialetos da região compreendida entre Portalegre e Castelo Branco (centro interior), mas no quadro mais alargado da perda da vogal final -o:

«[na variedade da Beira Baixa e Alto Alentejo, dá-se a] elisão da vogal final não acentuada [u], grafada , ou a sua realização como [ɨ] [...]:

16 a. [baɫdˈi] baldio b. [k'ɔp] copo c. [tɾ'õkɨ] tronco [...].»

(Gramática do Português, Fundação Calouste Gulbenkian, 2013-2029, p. 103),

A vogal [ɨ] ocorre no português de Portugal como vogal átona e soa aproximadamente como o e mudo francês.

Pergunta:

Existe alguma diferença de significado entre sorôdio e serôdio ?

A primeira aparece associada à cultivo do arroz.

Com agradecimentos antecipados.

Resposta:

Serôdio, «tardio, fora de tempo», é a forma da norma-padrão e, portanto, indiscutivelmente correta.

A forma sorôdio já é mais discutível, pelo menos, como variante de serôdio, como já no século XVIII, dizia o gramático Madureira Feijó (1688-1741), na sua Orthographia (1734).

Mesmo assim, sorôdio especializou-se e tem uso correto como nome «designativo do arroz de produção de inverno» (José Pedro Machado, Grande Dicionário da Língua Portuguesa).

Pergunta:

Qual é a palavra dentro da língua portuguesa que representa o termo inglês eggcorn?

Parece que às vezes eles usam a palavra oronyms no lugar, mas oronyms em português é outra coisa.

Um exemplo deles para explicar esse fenômeno:

ex. 1: It seemed to happen all over sudden. (errado) ex. 2: It seemed to happen all of a sudden. (correto) [= «parece ter acontecido de repente»]

Um da nossa língua:

ex. 1: «Batatinha quando nasce esparrama pelo chão.» (errado) ex. 2: «Batatinha quando nasce espalha a rama pelo chão.» (correto)

Resposta:

Não há termo português que coincida exatamente com o termo inglês eggcorn. No entanto, o termo reanálise parece capaz de o traduzir adequadamente, apesar de, conceptualmente, ter compreensão mais vasta.

Fala-se em fenómeno de eggcorn, quando uma palavra ou expressão resultam da má compreensão de outras, através da substituição da forma original por outra foneticamente semelhante, cujo sentido também é contextualmente coerente1.

A forma do termo inglês é alusiva ao próprio fenómeno, pois provém da história verídica de alguém que pronunciava eggcorn (literalmente «grão de ovo») por deturpação de acorn («bolota»). Ao que parece, a troca passava despercebida, dada a similitude de eggcorn com a palavra correta (acorn) e a possibilidade de comparar uma bolota a um pequeno ovo. O caso foi relatado pelo linguista norte-americano Mark Liberman no seu blogue Language Log, em 23/09/2003, onde outro linguista, Geoff Pullum, sugeriu em comentário que às deturpações deste tipo se aplicasse a forma que levou à sua identificação, ou seja, eggcorn.

O fenómeno é idiossincrático, isto é, trata-se da deturpação cometida por um indivíduo. Este tipo de confusões pode ser frequente com certos títulos e letras de canções que se conhecem só por ouvido. Um exemplo em português poderia ser o caso de um jovem que dizia "Carminha Miranda" para se referir aos Carmina Burana2, conhecida obra medieval recriada pelo compositor alemão Carl Orff

Pergunta:

«"Ai, meu Deus!", pensou ela, já um tanto ansiosa.»

Na frase acima, está correto o uso da vírgula depois de «Ai»? E o ponto de exclamação também é de rigor?

Obrigado.

Resposta:

Em relação ao caso em questão, não há preceito rígido nem sobre a vírgula nem acerca do ponto de exclamação. O uso é sobretudo interpretativo, o que dá margem para alguma variação correta.

Assim, perfilam-se três opções, da indiscutivelmente correta à menos correta ou adequada:

1.ª  Recomenda-se, pelo menos, uma vírgula entre a interjeição e a expressão «meu Deus», que tem o duplo estatuto de interjeição e de vocativo. O facto de ser interpretável como vocativo reforça a necessidade de, pelo menos, ocorrer a vírgula à esquerda, a demarcar «meu Deus»: «Ai, meu Deus!». Neste caso, a marca exclamativa só ocorre no fim da sequência.

2.ª É possível ainda associar o ponto de exclamação seguido de vírgula: «Ai!, meu Deus.» Note-se, porém, que o ponto de exclamação parece enfatizar a expressividade de ai (p. ex., como reação súbita ou dor repentina ou aguda). O ponto de exclamação final é facultativo e até dispensável, visto sugerir ênfase atribuída em separado às duas interjeições, quando geralmente a ênfase está associada a toda exclamação (ainda que a associação da exclamação às duas expressões não seja opção descabida: «Ai!, meu Deus!» ou, ainda, «Ai! Meu Deus!»).

3.ª Não é impossível dispensar vírgula e ponto de exclamação depois de ai: «Ai meu Deus!». É solução discutível, e muito mais discutível será escrever o ponto de exclamação – «Ai! meu Deus.» Estas duas últimas opções afiguram-se como pouco ou nada recomendáveis.