Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Se a escansão se faz de acordo com o que se lê/diz, então o verso «Ser artista é ser alguém» não deveria dividir-se assim?

Se/rar/tis/ta é/ se/ral/guém

As consoantes não se ligam às vogais?

Resposta:

O que diz é pertinente, porque a escansão tem muitas semelhanças com a divisão silábica de uma palavra. No entanto, na representação da escansão de um verbo, não é obrigatório assinalar o começo de nova sílaba antes da consoante que acabar palavra e preceder nova palavra começada ou constituída por vogal (por exemplo, «ser/ artista»).

Assim, por exemplo, Amorim de Carvalho, no seu Tratado de Versificação Portuguesa (Centro do Livro Brasileiro, 1981, p. 16), divide um verso de Os Lusíadas do seguinte modo:

Deu/ si/nal/ a/ trom/be/ta/ cas/te/lha/na

Verifica-se a sequência «... si/nal/ a/...», que apresenta a barra de separação depois da consoante que trava uma sílaba final, muito embora foneticamente, na cadeia fónica, essa consoante se ligue ao artigo definido a e comece nova sílaba.

Não obstante, em situações destas, na prática, a contagem de sílabas tanto pode considerar que a consoante pertence à sílaba que trava, definindo fronteira de palavra, como aceitar que começa nova sílaba no conjunto das que constituem o verso.

Pergunta:

Testamento hológrafo, ou ológrafo?

Agradecido.

Resposta:

Escreve-se hológrafo, adjetivo assim definido pelo Dicionário Houaiss: «Diz-se de testamento inteiramente escrito pela mão do testador.» É palavra que tem origem no «grego hológraphos, os, on, "totalmente escrito pela mão do autor", pelo latim holographus, a, um, "idem"».

Pergunta:

Em medicina de reabilitação e em fisioterapia, usamos a palavra sedestação. É correto o seu uso? Deveremos dizer sentado?

Resposta:

Os dicionários gerais não registam a palavra, o que também não é significativo, porque se trata de um termo especializado. De qualquer modo, em páginas da Internet, confirma-se o uso de sedestação, com o significado de «posição sentada» ou «capacidade de estar sentado», provavelmente como decalque do espanhol sedestación, que pressupõe o verbo sedestar, o mesmo que «estar sentado» (também ocorre em inglês sedestation, mas esta forma é provavelmente transposição do espanhol). Do ponto de vista das regras de construção de palavras, o termo é discutível1, mas a construção de terminologias tem neste momento certa margem de inovação (são frequentes os casos de amálgama), pelo que, se o seu uso está consolidado entre especialistas, não avulta razão para o rejeitar nesse âmbito.

1 Agradeço a Luciano Eduardo de Oliveira o seguinte comentário: «[...] o mais correto seria sedistação, já que nestes casos se usa o genitivo latino, aqui sedes, sedis. Ou então se juntou sedēre + stāre e se chegou a "sedestar" e depois "sedestação", o que, em latim, não tem sentido nenhum, já que sedēre por si só significa «estar sentado» e stāre significa «estar em pé» [...].»

Pergunta:

Na prática judicial, quando se pretende fazer referência ao exercício do cargo de cabeça de casal de determinada herança, é frequente utilizar-se indistintamente a expressão "cabeçalato" ou "cabecelato". Qual é que está correta? Ou estão ambas corretas?

Obrigada.

Resposta:

Recomenda-se cabecelato, embora também exista a variante cabecelado (nas fontes consultadas*, apenas o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, a acolhe). Cabecel é termo jurídico que significa «quinhoeiro principal de propriedade indivisa». Igualmente se regista cabeçal, mas como variante arcaica de cabecel (Dicionário Houaiss).

* Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras; Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Porto Editora; Vocabulário Ortográfico do Português, do ILTEC.

Pergunta:

A edição online do Jornal de Notícias tinha há dias o seguinte:

«[...] Na outra meia-final, vão defrontar-se o Basileia (Suíça), que eliminou o Totenham de Villas-Boas, e o Chelsea, onde pontificam os portugueses Hilário e Paulo Ferreira e ainda os ex-benfiquistas David Luiz e Ramirez.»

Pelo sentido da frase, parece-me que o(a) jornalista está a atribuir um significado novo (eu, pelo menos, não o encontro em dicionário nenhum da língua portuguesa) ao verbo pontificar, que julgo ser o de «sobressair» ou «destacar-se». Existe esta "nova" aceção?

Resposta:

Não é uma criação do jornalista, trata-se mesmo uma aceção que parece ter surgido durante o século XX.

Embora muitas obras não o registem (nem mesmo o Dicionário Houaiss, na sua 1.ª edição, de 2001), dois dicionários, um elaborado em Portugal e outro, no Brasil, acolhem pontificar na aceção de «destacar-se, sobressair»:

Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa (2001):

«pontificar [...] 3. Ser, alguém, a figura predominante de um dado acontecimento religioso ou profano = DESTACAR-SE, PREDOMINAR, SOBRESSAIR. Na Reforma pontificou Lutero. No Romantismo pontificaram Garrett e Herculano [...].»

Dicionário UNESP do Português Contemporâneo (2004):

«PONTIFICAR [...] 2. ter posição de destaque; estar na ponta: A escola de Cós, onde pontificou Hipócrates, interpretava as doenças dentro do quadro específico e peculiar de cada paciente. 3 estar posicionado em primeiro lugar: Até 1948, pontificavam como causa de óbito materno a infecção e a hemorragia [...].»

Este significado deve ter surgido em sentido figurado, a partir de aceção mais antiga e central do mesmo verbo: «oficiar na qualidade de pontífice», ou seja, «dirigir um culto religioso».

De notar ainda que uma consulta do Corpus do Português (Mark Davies e Michael Ferreira) revela que, embora em textos do século XIX não ocorram exemplos do uso de pontificar nesta aceção, a partir dos textos do século passado eles emergem e tornam-se mais frequentes.