Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber se um advérbio de tempo pode ser ao mesmo tempo advérbio de modo (dependendo da frase, claro). Se a resposta for afirmativa gostaria, se possível, que me dessem quatro exemplos.

Muito obrigado pela atenção.

Resposta:

Os chamados advérbios em -mente são os que apresentam certa ambivalência relativamente à sua interpretação. Casos como os de anteriormente, posteriormente, diariamente, mensalmente ou anualmente são tradicionalmente classificados como advérbios de modo, mas, na verdade, são advérbios de tempo. Com efeito, a leitura de modo que lhes pode ser atribuída torna-se menos central do que a leitura temporal (cf. Gramática do Português, da Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, p. 1580).

Pergunta:

Na frase «Delas surdiam todas as cartas anónimas», retirada da obra A Ilustre Casa de Ramires, de Eça de Queirós, como se classifica o verbo surdiam? Trata-se de um verbo transitivo, ou intransitivo?

Resposta:

O verbo surdir pode ser usado quer transitiva quer intransitivamente. No exemplo, a forma surdiam representa o uso de surdir com o significado de «provir» e como transitivo indireto, dada a presença de um complemento oblíquo (na anterior terminologia, um complemento circunstancial) que sugere origem do movimento, ou seja, da proveniência («delas»).

Pergunta:

Gostaria que me esclarecessem se existe uma forma considerada mais correcta para designar o profissional que se ocupa de trabalhos estatísticos ou é especialista em estatística. Surgem em diversos dicionários os termos estatístico e estatista como sinónimos, para além de alguns referirem também o termo estaticista.

Obrigado pela ajuda.

Resposta:

Os dicionários consultados (Dicionário Houaiss, dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, Dicionário de Língua Portuguesa, da Porto Editora, e Dicionário Priberam da Língua Portuguesa) registam as três formas mencionadas na pergunta, mas o uso quer institucionalizado quer não especializado favorece a forma estatístico:

(1) «Esta é a festa anual da Estatística em Portugal, um evento científico e profissional, de convívio entre os estatísticos portugueses [...]» (página do Centro de Estatística e Aplicações da Universidade de Lisboa).

(2) «[...] este trabalho, cuja inspiração inicial foi o Dictionary of Statistical Terms, da autoria do prestigioso estatístico Sir Maurice Kendall [...]» (Carlos Ventura, Dinis Pestana, M. Ivette Gomes, Pedro Pestana, Glossário de Termos Estatísticos – Alemão/Francês/Inglês/Português, Lisboa, Instituto Nacional de Estatística, 2013, pág. 331).

(3) «[...] os estatísticos podem atuar na indústria, no comércio, no esporte, no setor financeiro, em institutos de pesquisa, na agricultura e em pesquisas e previsões eleitorais e por aí vai» ("...

Pergunta:

Na expressão «Deus ajuda a quem madruga», qual é a função de «a» na frase? Porque não se diz «Deus ajuda quem madruga»?

Normalmente o verbo ajudar rege a mais infinitivo ou em mais substantivo...

Obrigada desde já pela resposta e atenção.

Resposta:

Como muitos provérbios, o uso a que se refere é um arcaísmo, que ainda se encontra no português dialetal. Com efeito, em certas variedades do português é possível encontrar ocorrências de ajudar com objeto indireto: «ajudar a alguém».

Este uso sintático pode também ter aproveitamento literário, como se verifica numa passagem escrita por José Saramago, na História do Cerco de Lisboa:

«[...] Alá não costuma ajudar a quem a si próprio se não ajude, e esses cinco barcos de cruzados que aí estão fundeados no rio há seis dias [...] (cf. Corpus do Português).

Pergunta:

Gostaria de conhecer a origem da expressão «é o pões».

Muito obrigado.

Resposta:

Sobre a origem histórico-factual da expressão, as fontes consultadas (ver mais adiante) são omissas sobre o assunto. No entanto, do ponto de vista descritivo, é possível dizer que expressão «é o...», seguida de uma forma verbal no modo indicativo, se usa com valor de dúvida ou negação, como diz Guilherme Augusto Simões, no seu Dicionário de Expressões Populares Portuguesas (Lisboa, Edições D. Quixote, 1993), a propósito do caso concreto de «é o dás»:

«É o dás. Diz-se quando se duvida de que alguém dê o que diz dar, ou quando se dá uma nega ("Querias que ele te desse? É o dás!").»

Anote-se, porém, que a construção «é o» + verbo não se limita ao verbo dar, ocorrendo frequentemente como comentário que marca a atitude de alguém que fala e considera improvável ou impossível uma dada situação:

(1) «Julgas que pões o carro a funcionar? É o pões!»

Outras vezes, como diz G. A. Simões, marca uma negação:

(2) «Quiseram que eu falasse, mas é/era o falas, com tantas pessoas a protestar!»