Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber o que poderá justificar dizer-se «Prémio Nobel de Literatura».

Vejo frequentemente escrito em capas de livros e em vários textos (artigos de jornal, etc.). Utiliza-se a contração da preposição de +artigo a, para todos os outros Prémios («da Física», «da Economia», «da Medicina», «da Paz», «da Química»). Porquê, então, «de Literatura»?

Que, aliás, não é uma utilização constante, há quem diga e escreva «da Literatura».

Qual a forma correta?

Obrigada.

Resposta:

A resposta a dar é mais de natureza interpretativa do que normativa.

A expressão «de Literatura» não está intrinsecamente errada, porque é expressão equivalente a literário, de valor relacional1. Além disso, não é impossível nem incorreto omitir o artigo definido com as outras áreas: por exemplo, «prémio Nobel de Economia» é uma construção recorrente em páginas brasileiras.

Mas, em Portugal, parece haver preferência pela determinação da denominação da área com o artigo definido, ao que se pode atribuir motivação semântica, de forma a sublinhar a importância de cada área, tomada globalmente e assim dando representatividade aos prémios em referência.

Além disso, o caso de «prémio Nobel da Paz» – que não permite «de Paz» (não é um prémio "pacífico"...) – acaba por permitir, parece-nos e concordando com a consulente, que se reforce o emprego do artigo definido nas outras denominações: «prémio Nobel da Física/Química/Medicina/Literatura/Economia/Paz».

 

1 Os constituintes nominais sem artigo definido prestam-se, aliás, a um uso referencial genérico de tipo , em construções como «comida de gato», «carro de praça», «animal de companhia». etc. (ver Gramática do Português da Fundação Calouste Gulbenkian, 2013-2020, pp. 791-792).

Pergunta:

«...Um dos maiores cartunistas português...» ou .«..um dos maiores cartunistas portugueses...»?

As duas frases não me parecem erradas, no entanto, fica-se na dúvida sobre qual será a mais correcta.

Grato pela atenção.

Resposta:

A frase indiscutivelmente correta é «..um dos maiores cartunistas portugueses...». E, no Ciberdúvidas, a propósito desse assunto, várias são as explicações dadas, em respostas anteriores: aqui, aqui, aqui aqui.

Contudo, vale pena registar aqui um parecer que José Neves Henriques (1916-2008) considerava não ter argumentos consistentes – o de Rodrigues Lapa (1897-1989), na Estilística da Língua Portuguesa (Coimbra Editora, 1979):

«Um caso [...] muitas vezes debatido tem sido o da concordância de frases como esta: "Foi dos primeiros que chegou lá acima". Os gramáticos ce...

Pergunta:

Encontrei recentemente um documento que utilizava o "pretérito mais-que-perfeito anterior do indicativo".

Nunca tinha visto isto antes e queria saber se tem um significado diferente do "pretérito mais-que-perfeito simples".

Nunca o vi, talvez algumas pessoas ainda o utilizem?

Obrigado pela sua ajuda.

Resposta:

Nas fontes gramaticais consultadas para esta resposta1,  não há referência a tal tempo composto.

No entanto, já incluímos esse tempo na série de tempos verbais da conjugação verbal numa resposta dando como exemplo «tivera falado» (ver aqui). Em todo o caso, observe-se que está documentada a possibilidade de o auxiliar ter, que participa dos tempos compostos, assumir as formas do mais-que-perfeito quando entra nas formas de mais-que-perfeito do conjuntivo e de condicional composto:

(1) Se tivera [tivesse] sabido disso, nunca teria dito tal coisa.

(2) Se tivesse sabido disso, nunca tivera dito tal coisa.

São formas corretas, e que poderão ser classificadas com o termo gramatical em questão.

 

1 E. Bechara, Moderna Gramática Portuguesa. Ed. Lucerna;  Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo. Ed. Sá da Costa.

Pergunta:

Porque é que se diz Taiwan em lugar de "Taiwão"?

Nos casos de Paquistão e Afeganistão pode-se encontrar um padrão que não aplica no caso de Taiwan. É muito raro que uma palavra portuguesa termine com a letra n.

Então, é uma exceção como escrevemos e dizemos o nome do país asiático?

Resposta:

O topónimo ainda não foi completamente adaptado ao português, e, portanto, mantém-se no uso a forma Taiwan, mesmo em âmbitos oficiais, como evidencia o Código de Redação Interinstitucional para uso do português na União Europeia1.

O nome tradicional português que se atribui, pelo menos, à ilha é Formosa (cf. Textos Relacionados).

O uso da forma Taiwan em português não parece anterior ao final dos anos 40, quando, com o fim da guerra civil chinesa e a retirada das forças nacionalistas para a ilha Formosa, se proclamou a República da China, com capital em Taipé. Já a forma Afeganistão aparece atestada, pelo menos, desde os finais do século XIX, por exemplo, na 1.ª edição (1899) do Nôvo Diccionario da Lingua Portuguêsa, de Cândido de Figueiredo. Mais tarde, o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, que a Academia de letras publicou em 1940, daria entrada à forma Afeganistão bem como a outras como Tajiquistão e Curdistão. Quando se formou o Paquistão, na sequência da independência da Índia em 1947, havia já exemplos da passagem do elemento -stan a -stão.

Acrescente-se que Taiwan não parece ter origem clara, mas atribui-se à expressão formada por tau, «povo», e an, «terra», palavras de uma língua nativa da Formosa, o siraia (cf. Wiktionary). Outra fonte, considera que vem presumivelmente de uma língua chinesa, de tai, «plataforma», e wan, «baía» (Online Etymology).

 

1 Em nota ao registo de Taiwan

Pergunta:

Gostaria de saber quando em Portugal se fala, por exemplo, "viage" em vez de viagem.

Lembro de ter visto a queda do eme em literatura mais antiga, demostrando que não é uma criação brasileira, mas que veio de Portugal.

Isto é: por que se optou por colocar o eme? De onde vem isso?

Resposta:

Em português medieval, os nomes que vinham do francês com o sufixo -age1, por exemplo, viagem (de viage) convergiram por analogia com os nomes que evoluíram de outros latinos terminados em -ine – tal como virgem, do latim vulgar virgĭne – que tinham variantes sem nasal (marcados por til, n ou m).

Em muitos dialetos portugueses, como aconteceu em galego, a convergência foi em sentido contrário: a forma virgem já tinha a variante virge, sem nasalidade como acontecia com a forma arcaica viage.

 

1 José Pedro Machado observa no seu Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa: «Primitivamente [-agem] era, como em francês -age: linhage, menage. Cedo porém passou a -agem por analogia com -agem1 [do latim -agĭne, como em imagem].»