Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor
<i>Portugal</i>, <i>Canadá</i> e <i>Califórnias</i> de aquém-mar
Três notas de toponomástica

A propósito do livro Factos Escondidos da História de Portugal – O que Os Compêndios Não Nos Dizem (Lisboa, Oficina do Livro, 2021), do jornalista José Gomes Ferreira, apresentam-se três comentários à etimologia de três nomes geográficos – Portugal, Canadá e Califórnia. Um texto de Carlos Rocha.

Na imagem, a vista para poente na praia da Califórnia, em Sesimbra (fonte: portal da Câmara Municipal de Sesimbra).

 

 

 

Pergunta:

Lendo a crónica satírica do Comendador Marques de Correia na Revista do semanário Expresso do dia 16 de outubro de 2021, fiquei com a dúvida do correto emprego da forma verbal do verbo dizer nesta frase:

«É certo e confirmado que quem dizer esta oração ao primeiro militante do CDS que encontre num raio de 20 quilómetros (ou de 40 em áreas desertificadas) consegue salvar este partido do extermínio ou da compra por parte do mestre André (Ventura) que apesar das broncas ainda dura.»

Não devia ter ido usado, antes, o futuro do conjuntivo, disser?

Agradecido.

Resposta:

No contexto em questão, a forma correta é de facto disser, forma do futuro do conjuntivo (subjuntivo), que não deve ser confundida com dizer, que é a forma de infinitivo do verbo em apreço.

Depois de quem a introduzir oração (relativa) podem ocorrer tempos do conjuntivo (subjuntivo), mas nunca formas do infinitivo, como é o caso de dizer:

(1) «Quem disser esta oração ao primeiro militante do CDS que encontre num raio de 20 quilómetros (ou de 40 em áreas desertificadas) consegue salvar este partido do extermínio.»

Recorde-se que os verbos irregulares  – caber, dar, dizer, estar, fazer, poder, pôr, saber , ser, ter – têm formas de futuro do conjuntivo que não se confundem com os respetivos infinitivos: couber, der, disser, estiver, fizer, puder, puser, souber, for, tiver. Um processo didático para evitar confusões é considerar que são formas que vão buscar o seu radical (a sequência inicial da forma verbal sem as terminações) à forma de 3.ª pessoa o pretérito perfeito do indicativo sem a terminação -am: couber[am], der[am], disser[am], estiver[am], fizer[am], puder[am], souber[am], for[am], tiver[am].

Sobre o futuro do conjuntivo de dizer e de outros verbos irregulares, consultem-se os Textos Relacionados (ver infra), em especial a resposta "A confusão entre o infinitivo pessoal e o futuro do conjuntivo".

Pergunta:

Vejo regularmente o título "História de África" para catalogar os livros que documentam a história africana, mas o título correcto não seria "História da África", sendo que também se fala em História da Europa ou da História da América do Norte.

África é um nome feminino, que possui o mesmo grau de feminidade que as palavras Europa e América possuem (assumo), portanto porque se costuma utilizar de invés de da?

Resposta:

O nome geográfico África, depois de preposição, pode empregar-se com e sem artigo: «vento de África» (sem qualquer artigo), «vão para a África» (com artigo definido).

Quando África ocorre sem preposição, tem artigo: «A África é um continente» (a não ser que ocorra em títulos de jornal: «África exposta à mudança de clima»).

Tanto quanto se pode apreciar, não se trata de uma questão de feminidade, nem a omissão do artigo definido, ou seja, da sequência formada por preposição e este nome próprio, configura uma caso de masculinidade ou machismo linguístico. Com efeito, se assim fosse a questão também se poria – e não se põe – em relação aos casos semelhantes de «em/na Espanha/França/Inglaterra/Itália», que evidenciam o mesmo tipo de oscilação no uso.

Note-se que África, como Espanha/França/Inglaterra/Itália, dispensa a associação de artigo definido1 talvez como traço arcaico, uma vez que na língua antiga era mais frequente os topónimos ocorrerem sem artigo definido. Os casos de Castela, Leão e Aragão, nomes dos reinos medievais peninsulares que estão muito presentes na documentação mais antiga, sugerem essa hipótese: «vivo em Leão/Castela/Aragão» ( e não «vivo *no Leão/*na Castela/*no Aragão»).

O mesmo parece acontecer com Marrocos («nasci em Marrocos», embora no português Brasil apareça o artigo definido) e com alguns nomes também são recorrentes  desde os tempos da colonização: «nasci em Angola/Moçambique». No entanto, foge a esta lógica, Cuba, em referência ao país das Antilhas assim chamado, que aparece igualmente sem artigo definido: «em Cuba» (não é de excluir a influência do castelhano, que raramente admite artigo com nomes de países e continentes).

 

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Pergunta:

Gostaria de saber qual a forma correta: «no Algueirão» ou «em Algueirão»?

Resposta:

Ambos os usos se aceitam.

Tradicionalmente, diz-se com artigo definido -- «o Algueirão» --, que parece bastante corrente. Mas com mais formalidade diz-se sem artigo, por exemplo, quando se refere a junta de freguesia.

Note-se, aliás, que um mesmo documento pode evidenciar os dois usos, como acontece numa página do sítio eletrónico da junta de freguesia de Algueirão-Mem Martins:

(1) «A origem toponímica da povoação de Algueirão tem a ver com a morfologia da área.»

(2) «Durante séculos o crescimento demográfico do Algueirão e da vizinha povoação de Mem Martins não foi significativo.»

O topónimo Algueirão tem origem na forma árabe gīrān , que significa «cavernas» e é plural de gār, «caverna». Esta etimologia é congruente com a existência da cavidades no terreno calcário da região da freguesia de Algueirão-Mem Martins.

 

1 Ver R. Pocklington, "Lexemas toponímicos andalusíes", Alhadra, 16, 2016, p. 253. Ver também David Lopes, "Toponímia árabe de Portugal", Revista Lusitana, XXIX, p. 260.

Pergunta:

dicionário da Porto Editora regista o termo «contravontade». Não percebo bem quando devemos escrever «contra vontade» e quando devemos escrever «contravontade».

Acabo de ler «Ele fez isto um pouco a contravontade», o que – além do termo em si –, me desperta dúvidas relativamente ao precendente «a». Podem ajudar-me, por favor, a perceber esta especificidade.

Muito obrigado.

Resposta:

Não é obrigatória a grafia contravontade, em lugar da locução adverbial «contra vontade».

No caso apresentado, há uma interferência de «a contragosto», locução que inclui contragosto, que se grafa corretamente como forma aglutinada. Mas, quanto a escrever contravontade, conforme regista a Infopédia, parece não haver consenso como evidencia a forma «contra vontade», registada como locução em subentrada a vontade (cf. Priberam). Além disso, não se encontra atestado em dicionários menos recentes, o que sugere que o caso de contravontade será recente no tocante ao uso adverbial, muito embora faça todo o sentido como nome, seguindo o modelo de contrapoder ou contrarrevolução.

Em suma, apesar de a Infopédia apresentar contravontade como advérbio, nada há de errado na grafia analítica «contra vontade».