Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber a etimologia da palavra batuque, assim como todas as informações relativas a esta palavra.

Agradecendo-lhes desde já a vossa ajuda.

Resposta:

A origem do substantivo masculino batuque é tema controverso.

José Pedro Machado, no seu Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, considera que batuque é um derivado regressivo de batucar, que, por sua vez, significa «bater continuamente» e deriva de bater. Contudo, o Dicionário Houaiss, na nota etimológica correspondente a esta entrada, embora permita verificar que Machado coincide com os filólogos brasileiros Antenor Nascentes e Antônio Geraldo da Cunha, refere outras propostas que apontam para uma relação com as línguas africanas:

«orig[em] contr[o]v[ersa]; segundo Nascentes, regr[essivo] de bater; segundo A[antônio] G[eraldo da] C[unha], regr. de batucar; para Cacciatore1, talvez do ronga batchuk, "tambor, baile"; Nei Lopes2 sugere associação com o verbo quimb[undo] tuka, "saltar".»

É, portanto, possível que, não negando a relação da palavra com o radical do verbo bater, se tenham nela projetado ou diretamente intervindo elementos mórficos e semânticos de procedência africana.

Ainda segundo o Dicionário Houaiss, a palavra está atestada, pelo menos, desde o século XVIII (em 1770, no Tractado da Queixas Endemicas, e mais Fataes nesta Conquista, pelo dr. Francisco Damião Cosme). Machado (op. cit.) indica uma datação mais tardia, em 1871, data de publicação do Grande Dicionário ou Tesouro da Lingua Portuguesa de Domingos Vieira, onde a palavra surge registada.

Quanto a prestar informações de caráter enciclopédico ou especializado sobre o objeto que se denomina batuque, parece-me que a consulente deverá procurar ajuda não aqui, no Ciberdúvi...

Pergunta:

Qual foi o critério para a retirada dos hífenes em pé de atleta, pé de boi, pé de chinelo, pé de galinha, pé de moleque, pé de pato, e não em pé-de-meia? Por que não também pé de meia, sem hífenes? Por que pé-de-meia é uma excepção? E, retirados os hífenes, todas aquelas palavras, antes escritas com hífenes, não viraram locuções? Então, como entender que sejam classificadas como meros substantivos, se agora se tornaram locuções?

Resposta:

O Acordo Ortográfico de 1990 estipula que pé-de-meia mantém o hífen, sendo assim uma exceção ao que o mesmo documento determina em relação às locuções substantivas que contêm um elemento de ligação sem se referirem a espécies botânicas ou zoológicas (Base XV, n.º 6):

 

«Nas locuções de qualquer tipo, sejam elas substantivas, adjetivas, pronominais, adverbiais, prepositivas ou conjuncionais, não se emprega em geral o hífen [...]. Sirvam, pois, de exemplo de emprego sem hífen as seguintes locuções: a) Substantivas: cão de guarda, fim de semana, sala de jantar;[...].»

No entanto, o Vocabulário Ortográfico do Português (VOP) do ILTEC, generalizando esta regra à palavra em causa, regista «pé de meia» com a variante pé-de-meia.

OBS.: Na discussão do uso dos hífenes em locuções com elementos de ligação (pé-de-meia/pé de meia ou sala de jantar), convém assinalar se contesta o critério adotado  no VOP. Refira-se a posição do consultor D´Silvas Filho, que defende a conservação do hífen nas locuções que tenham perdido os seus significados composicionais (os dos seus elementos) para adquirirem signifi...

Pergunta:

Antes de mais, obrigado pelo serviço que têm vindo a prestar!

Passando à questão, no título Advérbios conetivos contrastivos, como deve ser lida a palavra contetivos? "Cunétivos", ou "cunetivos" (sem abrir o e)? Em qualquer dos casos, como justificar a fonética?

Muito obrigado!

Resposta:

Conforme se regista no Vocabulário Ortográfico do Português, a palavra em questão tem dupla grafia em Portugal — conetivo e conectivo, formas pronunciadas, respetivamente, [kunɛˈtivu] e [kunɛˈktivu] (esta última transcrição é a que consta no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa). Ambas as grafias correspondem a pronúncias com e aberto, porque é com esse segmento que tais formas têm sido articuladas. Na antiga ortografia, a letra c, mesmo muda, mas com função diacrítica (de mero sinal auxiliar), permitia indicar a abertura da vogal, mesmo que esta encontrasse em sílaba átona. Contudo, é preciso assinalar que, nessa época, já havia palavras que, sem exibirem consoante diacrítica, se pronunciavam com vogais abertas em sílaba átona: inflação, com a aberto na sílaba átona -fla-; pegada, com e aberto na sílaba átona pe-; monocultura, com o aberto nas duas sílabas do radical mono-.

Quanto ao português do Brasil, a palavra em questão surge também com dupla grafia, de acordo com os registos de conectivo e conetivo no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras. No entanto, o Dicionário Houaiss, ao remeter a forma conetivo para conectivo, deixa inferir a preferência pela forma com a sequência -ct-.

 

Pergunta:

«Ando com cãibras nos dedos. Deve ser da falta de magnésio», ou «Ando com cãibras nos dedos. Deve ser falta de magnésio»?

Estão ambas as frases correctas? Qual a diferença?

Muito obrigado.

Resposta:

Ambas as frases estão corretas, embora a primeira seja interpretável como elipse de «ser por causa de» e tenha algum caráter informal.

Pergunta:

Na frase escrita no Público online: «Para dentro do perímetro policial foram arremessadas garrafas de vidro e cartões vermelhos, que simbolizam a vontade das pessoas em mandar o Governo para a rua», lê Helena Matos (aqui) que as garrafas simbolizam a vontade das pessoas em mandar o Governo para a rua. Atendendo à posição da vírgula na frase, esta é a leitura correcta? Ou podemos admitir, como terá sido vontade do jornalista, que apenas os cartões são símbolo? Caso esteja correcta a leitura de Helena Matos, como poderia o jornalista ter evitado essa leitura usando semelhante número de palavras?

Obrigado.

Resposta:

Tal como está construída, a frase tem uma construção relativa que é ambígua: o que simboliza a vontade das pessoas? Só os cartões, ou também as garrafas? Pelo conhecimento que temos do mundo (o cartão vermelho é ordem de expulsão do jogo), somos capazes de dizer que a expressão «cartões vermelhos» é que determina a referência do pronome relativo que. Será talvez esta a leitura pretendida por quem escreveu a frase. Mas, visto o pronome que remeter para uma pluralidade, como  aponta o verbo da oração relativa («simbolizam»), e o constituinte «garrafas de vidro» estar coordenado com «cartões vermelhos», toda a estrutura de coordenação «garrafas de vidro e cartões vermelhos» pode ser também tomada globalmente como antecedente desse pronome relativo, juntando assim uma nota de violência física, como passagem ao ato, dificilmente conciliável com a natureza mental do símbolo. Sendo assim, interpretada no contexto da agitação social que se verifica em Portugal em consequência da crise financeira, essa ambiguidade frásica, provavelmente não intencional, pode ser aproveitada com intuito polémico, no sentido de implicitamente acusar a notícia de escamotear a gravidade de certos atos lesivos da integridade física de outrem; com efeito, o ato de arremessar garrafas passa paradoxalmente por símbolo, quando na verdade se trata de um meio de agressão bem concreto, usado com a finalidade de atingir as forças policiais.

Seria, pois, melhor dar outra redação à frase, de modo a evitar a referida ambiguidade; por exemplo:

«Para dentro do perímetro policial foram arremessadas garrafas de vidro e atirados cartões vermelhos, estes como símbolo da vontade das pessoas em mandar o Governo para a rua.»