Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Numa passagem do livro A Mão e a Luva, de Machado de Assis, lê-se «Naquela tarde, como estivesse olhando para as mangueiras, a cobiçar talvez as doces frutas amarelas que lhe pendiam dos ramos, (...)». Como se justifica o uso do pronome lhe no singular, quando ele se refere a mangueiras?

Resposta:

Não excluindo a hipótese de se tratar de erro (Machado de Assis deveria ter escrito lhes, se queria referir-se às «mangueiras», no plural), há outras duas possibilidades, pressupondo a ambiguidade de lhe nessa frase:

1. O lhe refere-se a «mangueiras», apesar de se encontrar no singular, reproduzindo assim um funcionamento arcaico do pronome pessoal, que Camões patenteia na sua linguagem do séc. XVI. Nesse caso, trata-se de um dativo possessivo («seus ramos»).

2. O pronome lhe refere-se à personagem Guiomar, que assim é construída como beneficiária do facto de as mangueiras estarem carregadas. Nesse caso, a construção configura um dativo de interesse, e a frase deve ser entendida como «as frutas doces que pendiam dos ramos para ela».

Pergunta:

A interjeição uai, que exprime espanto, surpresa, impaciência, susto, terror, é muito usada em Minas Gerais, Brasil, pelos mineiros, seus naturais ou habitantes, constituindo-se num verdadeiro símbolo deles e de seu Estado, embora também se faça ouvir em outros Estados brasileiros como, por exemplo, em Mato Grosso do Sul, onde nasci e moro. Eu mesmo sempre a utilizei, pouco me importando se ela é considerada por muitos também como símbolo caipira ou como linguajar caipira.

Li alhures que em Portugal a palavra em apreço é usual em Setúbal. É verdade? Se a resposta for afirmativa, poderiam dizer-me se a mesma tem uso apenas na cidade de Setúbal ou também em todo o distrito de Setúbal? E em outras partes de Portugal ela seria utilizada?

O dicionário em linha da Porto Editora consigna uai, acusando a sua utilização na Guiné-Bissau, entretanto, nada dizendo se nos demais países africanos de expressão portuguesa ela ocorre, pelo que peço os esclarecimentos do Ciberdúvidas quanto a este ponto específico. Registre-se ainda que o referido elucidário eletrônico parece ignorar o uso da mesma no Brasil, já que a ele não faz menção.

Peço ainda informações sobre a etimologia da interjeição em apreço e bem assim se teria vindo de Portugal para o Brasil durante a colonização.

Por favor, os esclarecimentos do nosso Ciberdúvidas, sempre eruditos, corretos e estéticos, portanto de alta qualidade.

Muito obrigado.

Resposta:

A interjeição uai parece ter uso extensivo em diferentes regiões do espaço linguístico do português — não é, portanto, como o consulente bem frisa, exclusivo de Minas Gerais e dos outros estados brasileiros. Mas definir com precisão as zonas dialetais onde essa interjeição é corrente não é tarefa fácil, porque os dicionários gerais podem não concordar entre si.

Dito isto, passo a comentar as hipóteses e questões levantadas pelo consulente:

1. Entre os dicionários gerais que consultei1, nenhum atribui a interjeição uai! ao falar da cidade de Setúbal. Tal não significa que a interjeição não se use ou não se tenha usado nessa cidade ou na sua região; o mais que se pode apurar, já não nos dicionários consultados, mas em dicionários de regionalismos, é que uai! também ocorre ou ocorria2 em falares algarvios, conforme se regista no Dicionário do Falar Algarvio, de Eduardo Brazão Gonçalves (Algarve em Foco Editora, 1996). Sabendo que a cidade de Setúbal acolheu muitos algarvios, é natural que a interjeição se ouvisse ou se ouça ainda nessa cidade portuguesa.

2. Só o Grande Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora (com a versão em linha do Dicionário da Língua Portuguesa da mesma editora) indica que uai! é interjeição usada na Guiné-Bissau. O Aurélio XXI diz que, além de brasileirismo, se trata de provincianismo português, sem especificar. Os restantes dicionários que consultei classificam a palavra como brasileirismo, mas também acrescentam que é regionalismo açoriano, chegando a 3.ª edição do dicionário de Cândido de Figueiredo a caracterizá-lo como termo das Flores, equivalente a ah! e oh!. O...

Pergunta:

Tenho visto com frequência os vocábulos ingleses amenities (no sentido de comodidades oferecidas por determinado alojamento) e complimentary (na aceção de gratuito) traduzidos em português respetivamente como amenidades e «de cortesia». Tenho grandes reservas em relação a estas traduções, especialmente a primeira, que me parece um decalque, e não as encontrei dicionarizadas como tal nas publicações que consultei.

Grato, desde já, pelo vosso esclarecimento.

Resposta:

A palavra inglesa amenities, no plural (singular amenity) pode ser traduzida, em referência a instalações, por «comodidades e equipamentos» (versão em linha do Dicionário Inglês-Português da Porto Editora; ver também Dicionário Verbo Oxford Inglês-Português 2003 e The Oxford Portuguese Dictionary, que acrescentam atrativos, vantagens, confortos). A expressão «hotel amenities» é traduzida por «equipamentos de hotel» (Dicionário Inglês-Português da Porto Editora).

Quanto a complimentary, aceita-se a tradução pela expressão «de cortesia», além de grátis e «de graça» (cf. idem; no Dicionário Oxford Verbo Inglês-Português, como sinónimo de free).

Pergunta:

A minha dúvida prende-se com a maneira correcta de pronunciar o nome Diego.

Este nome encontra-se na lista autorizada de nomes do Instituto dos Registos e Notariado de Portugal, mas por ser pouco comum ninguém me sabe dizer se se pronuncia "Diêgo" ou "Diégo".

Será que me podem ajudar?

Obrigada.

Resposta:

Não conheço fontes que indiquem qual a pronúncia mais frequente ou mais aceite do nome próprio Diego. Como falante de português europeu, costumo pronunciá-lo com e aberto, e outros falantes também, como se pode ouvir numa reportagem televisiva com a locução nessa variedade. Além disso, é possível que esse e aberto na forma do nome em português europeu seja motivado pelos aspetos fonéticos do e no ditongo crescente ie em castelhano, atendendo ao que descreve T. Navarro Tomás, no Manual de Pronunciación Española (Madrid, Instituto Miguel de Cervantes, 1982, pág. 65; ę e ǫ representam e e o abertos; o acento tónico, sobre a vogal no original, passou para o começo da sílaba tónica):1

«De las vocales e, o queda dicho que ante la semivocal i resultan relativamente abiertas [...] Los diptongos crecientes, formados por semiconsoante y vocal, son: ia-ja, ie-ję, io-jǫ, iu-ju, ua-wa, ui-wi, uo-wǫ. Ejemplos. [...] viejobięxo [...].»

Mas não é impossível que muitos falantes o usem com e fechado tendo em conta que nomes próprios e substantivos comuns com -o final e -e- na penúltima sílaba (que é tónica), têm esta vogal pronunciada como "ê" (símbolo fonét...

Pergunta:

Deve dizer-se: «Deve evitar-se fazer queimas nos pinhais», ou «deve evitar-se fazer queimadas nos pinhais»?

Sempre ouvi e li «queimas (de geada)» para vegetais (videiras, hortaliças, etc.) e «queimadas» para restos de matos ou urze nos pinhais.

Obrigado.

Resposta:

Em relação a atividades típicas do mundo rural, aceita-se a diferença definida pelo consulente, embora se trate de uma esfera da realidade a que não se aplica rigor terminológico, pelo que queima e queimada podem ser sinónimos em certos contextos. A consulta de alguns dicionários publicados em Portugal (dicionário da Academia das Ciências de Lisboa — DACL; versão em linha do Dicionário de Língua Portuguesa, da Porto Editora — DLPPE; e Dicionário Priberam da Língua PortuguesaDPLP)1 deixa concluir que uma queimada é uma queima, mas uma queima nem sempre é uma queimada; ou seja, queima tem maior extensão de significado do que queimada, palavra de sentido mais restrito. Diz-se, assim, que o primeiro vocábulo é hiperónimo do segundo, e este é hipónimo daquele.

Além disso, os dicionários consultados mostram que queimada é sinónimo de queima, quando esta palavra significa «destruição de vegetação ou lixo pelo fogo» (DLPPE) ou, noutra formulação equivalente, «fogo que se lança aos campos de restolho» (DPLP), muito embora esta aceção não se afigure como a mais típica de queima, atendendo a que não surge entre as primeiras atribuíveis. A respeito da entrada queimada, a primeira aceção é a de «destruição de ...