Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Em textos antigos, não é raro ver o ponto e vírgula sendo usado em orações coordenadas sindéticas explicativas. Exemplo disso é o seguinte trecho de um conto de Machado de Assis publicado originalmente em 1881, chamado "Teoria do medalhão":

«De oitiva, com o tempo, irás sabendo a que leis, casos e fenômenos responde toda essa terminologia; porque o método de interrogar os próprios mestres e oficiais da ciência, nos seus livros, estudos e memórias, além de tedioso e cansativo, traz o perigo de inocular ideias novas, e é radicalmente falso.»

Além disso, ainda hoje é muito comum ver o ponto e vírgula sendo uso antes de orações aditivas/copulativas. Quanto a isto, aqui mesmo no Ciberdúvidas há um ótimo exemplo, numa resposta dada em 1998 pelo falecido José Neves Henriques: «Na academia aprendi jogos; e lutas que incluem defesa pessoal.»

Em todas as gramáticas que consultei, no entanto, as únicas orações coordenadas sindéticas em que o uso do ponto e vírgula parece ser considerado aceitável são as conclusivas e as adversativas. Assim, gostaria de saber a opinião de vocês sobre esta questão.

Principalmente no caso das sindéticas explicativas, chegamos de fato ao ponto em que conectá-las com o ponto e vírgula pode ser considerado errado ou inadequado? Ou é simplesmente algo que caiu em desuso (como o próprio ponto e vírgula, aliás)?

Para terminar, agradeço a todos os colaboradores deste site, que me ajudaram não só a esclarecer diversas dúvidas, mas também a expandir meus horizontes no que se refere ao uso da nossa língua.

Resposta:

No primeiro caso, o ponto e vírgula1 justifica-se pela razão que o consulente bem identifica, e,sobretudo, quando tem certa extensão o período que abrange a oração explicativa, adversativa ou copulativa.

Não se trata, portanto, de um uso errado nem inadequado, atendendo a que vem referido num livro recente – Pontuação em Português (Guerra e Paz, 2020), de Marco Neves –, onde se lê:

«O ponto e vírgula é uma alternativa ao ponto e à vírgula (como o próprio nome indica). Tem duas funções. Serve para:

♦ organizar frases de grande dimensão – caso em que substitui o ponto;

♦ organizar enumerações em que os elementos estão em linhas separadas ou já incluem vírgulas lá pelo meio – caso em que substitui a vírgula.»

Sobre a primeira das funções identificadas, o autor citado acrescenta:

«Na frase seguinte, o ponto e vírgula permite organizar a frase de grande dimensões substituindo um ponto: [exemplo] "Uma das maiores dificuldades com que me deparei foi a inexistência de registos escritos; embora existissem algumas notas soltas, não havia um verdadeiro registo de ocorrências."»

Note que, no exemplo acima, o ponto e vírgula marca uma relação assindética, em que se subentende "pois" ou o "porque" explicativo.

No caso da frase de José Neves Henriques, o ponto e vírgula permite sublinhar a função aditiva da conjunção e.

Agradecemos as palavras de apreço do consulente.

 

1 Antes da aplicação do Acordo Ortográfico de 1990, era frequente escrever ponto-e-vírgula, forma hifenizada que constituía a norma brasileira. Atualmente, grafa-s...

Pergunta:

Percebi recentemente que teria tendência a escrever "inverosímel" em vez de inverosímil.

Intrigada, procurei encontrar uma explicação para esta tendência e percebi que, além de normalmente se pronunciar "inverosímel", o plural de inverosímil segue a regra de formação do plural das palavras terminadas em -el – inverosímeis.

Esta constatação despertou-me a curiosidade pela etimologia da palavra, mas não encontro nada que justifique a terminação em -il com plural em -eis.

Agradeço desde já uma eventual explicação, se a houver.

Resposta:

Os adjetivos terminados em -il átono formam o plural com a terminação -eis:

útil – úteis

ágil – ágeis

fácil – fáceis

O adjetivo inverosímil, tal como a sua base de derivação, o também adjetivo verosímil, pertence a esta série.

O plural em -eis parece dever-se à analogia com adjetivos terminados em -el átono, o que sugere que em fases anteriores da língua se oscilou entre "fácil" e "fácel" ou "fácele"2. Por outras palavras, assim como impossível tem o plural impossíveis, também inverosímil pluraliza sob a forma inverosímeis – e não "inverosímis", apesar de terminado em -il (cf. funil/funis).

Trata-se de uma particularidade dos adjetivos e nomes terminados em -il que são palavras graves (paroxítonas), conforme assinala Rosa Virgínia Mattos e Silva3: «[...] parece que o plural do tipo actual perduráveis, estáveis é posterior ao século XVI. Uma pista está na informação do Dicionário Etimológico de J. P. Machado, que afirma que fácis (de fácil) ocorre ainda no século XVI e fáceis só está documentado no século XVII [...].»

 

1 No Brasil, dá preferência verossímil e inverossímil, com -ss- (cf. Dicionário Houaiss).

2

Pergunta:

Quando se diz algo a alguém e lhe dizemos para não contar a "terceiros", porque se diz "terceiros" e não "segundos"? Não tinha mais sentido assim?

Resposta:

Fala-se de «terceira pessoa» quando se trata de quem não intervém numa situação em que há duas partes interessadas. Por exemplo, num contrato há duas partes intervenientes, e os que são estranhos a essa ligação de interesse são denominados «terceiros».

Terceiros é, portanto, sinónimo de estranhos, subentendendo-se tratar-se de pessoas fora de um grupo ou de uma relação entre duas partes.

A noção não é exclusiva do português e encontra-se noutras línguas de origem europeia:

–em espanhol: tercero, «pessoa que não é nenhuma das que intervêm numa questão de qualquer tipo» (dicionário da Real Academia Espanhola).

– em francês: tiers, «pessoa(s) que são estranhas à relação de duas pessoas ou a um ato jurídico» (cf. Trésor de la Langue Française);

– em inglês: third party , «pessoa ou grupo não diretamente envolvido numa questão respeitante a dois indivíduos ou duas partes (cf. LingueeWiktionary e Lexico Oxford);

– alemão: Dritter, «alguém que não está envolvido em determinada situação» (Wiktionary).

Pergunta:

O que significa a palavra dormidista? Não encontro em nenhum dos dicionários de referência – Houaiss ou Aurélio.

Desde já agradeço a ajuda.

Resposta:

A palavra dormidista ocorre na Gramática Histórica da Língua Portuguesa1, do gramático M. Said Ali (1861-1953), incluída numa série de derivados com o sufixo -ista e sem indicação do seu significado (mantém-se a ortografia original; sublinhado nosso):

«[-ISTA] 1221. É outro sufixo de origem grega.A sua primeira aplicação foi aos partidários [de doutrinas religiosas, filosóficas, políticas, artísticas].

1222. A par desta série de nomes existem outros, na maior parte modernamente creados ou importados do estrangeiro, com que se designam indivíduos cuja ocupação se relaciona com o objeto a que se refere o têrmo derivante: florista, flautista, jornalista, copista, dentista, fadista, cronista, maquinista, organista, latinista, helenista, trocista, rabequista, paisagista, acionista, seminarista, novelista, romancista, folhetinista, naturalista, estadista, dormidista, etc.»

Contudo, não parece haver registo dicionarístico deste vocábulo. O mais que se pode dizer é que dormidista deriva de dormida, que tem, entre outras aceções, a de «hospedagem ou pousada para pernoitar» (Dicionário Houaiss)2. Numa leitura composicional, isto é, tomando conjugando os significados dos seus formantes, poderá supor-se que dormidista tenha significado próximo de estalajadeiro, embora não seja de excluir que remeta para outros significados de dormida ou que signifique, por exemplo e muito prosaicamente, «pessoa que gosta de dormir».

 

Pergunta:

Devemos escrever «ambrosia» ou «ambrósia»?

Muitos dicionários distinguem entre ambrosia (bebida dos deuses) e ambrósia (termo botânico), mas isto parece-me bizantino.

Sempre ouvi e li «ambrósia», com acento, idependentemente dos termos (homónimos?).

Estou errado?

Obrigado.

Resposta:

Pronuncia-se e escreve-se ambrósia – pelo menos, em Portugal –, conforme já recomendava Rebelo Gonçalves, no seu Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa (1947, p. 47).

No Brasil, faz-se a distinção entre ambrosia («manjar dos deuses»,«doce feito de leite e ovos») e ambrósia (espécie botânica)1. No âmbito da dicionarística brasileira também se opera o mesmo contraste, apesar de se assinalarem oscilações, como aponta o Dicionário Houaiss2:

«grego ambrosía, as "alimento dos deuses (os imortais); perfume dos deuses" (com iota breve), pelo latim ambrosĭa, ae 'id.'; a prosódia ambrósia seria a recomendável, mas ambrosia parece imposta pelo uso, nas acepções referentes a "manjar de doçaria" [...].»

 

1 Cf. Maria Helena de Moura Neves, Guia de Uso do Português, São Paulo, Editora UNESP, 2003.

2 Ver também blogue Dicionário e Gramática.