Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

«O Manuel, tarimbado em discursos, tomou a palavra.»

«Em» é a regência correcta de tarimbado?

Como sempre, grato pelos vossos esclarecimentos.

 

O consulente escreve de acordo com a norma ortográfica de 1945.

Resposta:

É uso correto.

Tarimbado é um particípio adjetival (de tarimbar1), que o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa regista como brasileirismo com o significado de «que é experiente, que tem tarimba». No entanto, a consulta de outros dicionários portugueses não confirma que se trate de palavra apenas usada no Brasil (cf. também Infopédia  e Dicionário Priberam da Língua Portuguesa).

Quanto à construção de regência, segundo fontes brasileiras, associa-se-lhe a preposição em, conforme indica Celso Pedro Luft no seu Dicionário Prático de Regência Nominal:

«TARIMBA s.f. TARIMBADO a., s.m. em: Ter tarimba [experiência]/ser tarimbado em algo. “Antigo e tarimbado em qualquer ramo de atividade” (Aurélio, V. veterano, 3).»

A mesma preposição é atestada no Dicionário Michaelis.

 

1 O verbo tarimbar significa prestar serviço como militar; ser soldado» e deriva (ou melhor, é a conversão verbal) de tarimba, que, além de denotar um «estrado de madeira que serve de cama aos soldados no quartéis e postos de guarda» ou uma «cama rude e desconfortável», significa também «vida de soldado» e, por extensão metafórica, «experiência de vida» (cf. dicionário ...

Pergunta:

Há alguma tendência para considerar o mais-que-perfeito simples «mais passado» do que o mais-que-perfeito composto ou vice-versa?

Por exemplo: «O Manuel foi dar uma volta de automóvel; antes disso, tinha lavado o carro; ainda antes, estivera a pensar no que havia de fazer» ou «O Manuel foi dar uma volta de automóvel; antes disso, lavara o carro; ainda antes, tinha estado a pensar no que havia de fazer»?

Obrigado.

Resposta:

Não há diferença entre as duas formas de pretérito mais-que-perfeito, a simples (lavara, estivera) e composto (tinha lavado, tinha estado): ambos marcam um intervalo de tempo anterior a outro intervalo passado, como se assinala na Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, pp. 524/525):

«Na maioria dos seus casos, o pretérito mais-que-perfeito simples é praticamente equivalente ao mais-que-perfeito composto [...], muito mais frequente. [...] Corroborando esta equivalência, é possível que os dois tempos coocorram com o mesmo valor temporal: cf. "A Ana tinha visitado o avô, mas não lhe dissera que havia uma maneira de ele sair daquela situação."»

O que se observa na escrita é que ocorrem as duas formas, provavelmente com o intuito estilístico de evitar a monotonia:

(1) «Ah! Era tarde. Muito tarde. Ela bem via que o tinha perdido. Quisera resistir? Quisera fazer--se desejar? Coitada! Que infelicidade!» (João Gaspar Simões, Pântano, 194, in Corpus do Português, de Mark Davies).

(2) «Foi por eles que soube que " seu Jusa " se tinha enforcado e ficara todo um dia pendurado na corda amarrada na trave do tecto da loja [...]» (Castro Soromenho,

Pergunta:

Sempre me pareceu que devemos escrever «dependurar em», mas tenho visto, nomeadamente em textos poéticos, a forma «dependurar de». Está correta? A minha impressão está errada?

Obrigado, desde já.

Resposta:

É uso correto.

Nos dicionários de verbos consultados para dar esta resposta, indica-se que dependurar tem a mesma sintaxe que pendurar, verbo que constrói regência com em, de e sobre1.

Em textos literários do português de Portugal, atesta-se o uso de de associado ao particípio passado dependurado:

(1) «Até com uns pedaços de grilhões dependurados do pulso, e uma espada erguida na mão» (Eça de Queirós, A Ilustre Casa de Ramires, in Corpus do Português);

(2) «"Ferrageiro e gebo" rugia, entre dentes, ao descobri-lo, dependurado do smoking, a olhar absorto para a casaca dum criado» (João Gaspar Simões, Pântano, 1939, ibidem);

(3) «Acudindo de longe, o Palma vem encontrar o velho dependurado da trave do casebre» (Manuel da Fonseca, Seara de Vento, 1958, ibidem).

 

1 Cf. dicionário da Academia das Ciências de Lisboa. Celso Pedro Luft, no seu Dicionário Prático de Regência Nominal dá exemplos: «“3. TDpI: pendurar-se de ... Estar suspenso, dependurado ou pendente: Pendurar-se de um galho de árvore. Um filho pequeno pendura-se-lhe do seio. // Pendurar-se em, ...

Pergunta:

Li este texto onde surge a palavras "pageres" e "pager" que tudo indica, atendendo ao contexto, tratar-se de um tipo de embarcação (na Índia séc.XV ou XVI:

«Então [Vasco da Gama] mandou aos batéis que fossem roubar os pageres que eram dezasseis e as duas naus,...»

E, mais à frente:

«...Então o capitão-mor mandou a toda a gente cortar as mãos e orelhas e narizes e tudo isto meter em um pager, em o qual mandou meter...»

Não encontrei o termo em nenhum dicionário nem enciclopédia que não fosse com o habitual significado de "pager", palavra inglesa. Por isso recorro a vós solicitando que me possam esclarecer sobre o assunto.

Muito obrigado.

Resposta:

É uma variante de paguel ou paguer, «antiga embarcação da Índia» (cf. Infopédia  e Dicionário Priberam, bem como o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado1). As formas registadas nos vocabulários ortográficos são paguel e paguer2.

No Glossário Luso-Asiático (1919), de Sebastião Dalgado (1855-1922), pode ler-se o seguinte artigo, que carece certamente de alguma revisão nos dias de hoje (mantém-se a ortografia original):

«PAGUEL, pajer (ant.). Antiga embarcação de carga, na Índia meridional. Os dicionários do malaiala e os glossários não registam nenhum vocábulo correspondente; é porem muito verosímil que estivesse em voga no Malabar, ao tempo dos nossos descobrimentos, pagala, equivalente ao marata bagalā (concanim bagló), que quere dizer «uma embarcação arábica de especial feitio», e representa o árabe baqalā, usado no Mar Vermelho, conforme [Henry] Yule [orientalista escocês], para designar uma grande embarcação, construída de teca da Índia. É possível que baqalā seja corrupção do hispânico bajel, baxil ou baixel. Convêm notar que o marata tem pagār, que podia corromper-se em paguel;...

Pergunta:

Há um vernáculo para buffet? Aportuguesar a palavra francesa não deu muito certo, de sorte que soa muito mal aos ouvidos.

Tentei usar pasto, ceia, vocábulos referentes a comida, mas lembrei-me que buffet tem mais o sentido de um serviço de alimentação prestado em eventos de diversos tipos, como casamentos ou bailes de formatura.

Resposta:

Com o mesmo tipo de significados que buffet – ou já aportuguesado como bufete e bufê1 –, é difícil encontrar um termo vernáculo equivalente, com uso estável*.

Observe-se que os dois aportuguesamentos do galicismo não têm a mesma datação e configuram até certa divergência semântica. Com efeito, pelo menos, já desde o século XVII que se regista bufete na aceção de «espécie de mesa, aparador», como empréstimo de uma adaptação provavelmente castelhana do francês buffet2. Na passagem do século XIX para XX, associa-se-lhe o significado de «mesa, em que se servem refrescos, licores, etc., aos convidados de um baile ou festa»3, o mesmo com que buffet era bastante corrente na referida época. Este uso do galicismo também voltou a ser adaptado ao português, sob a grafia bufê.

Poderá, portanto, aceitar-se que buffet encontra em português, como forma equivalente, o seu aportuguesamento seiscentista, bufete. Contudo, dada a ambiguidade deste último, o emprego de bufê tem maior exatidão, posto que se aplica apenas a uma maneira de organizar uma refeição. Mesmo assim, outras formas mais vernáculas parecem possíveis, embora com menos estabilidade4. Curiosamente, é de assinalar  que o próprio francês buffet acaba por ser traduzido por ele próprio num dicionário francês-português, o da Porto Editora (disponível na Infopédia).

 

1 dicionário da Academia das Ciências de Lisboa regista a forma bufete com a variante bufê, em ambos os casos, aportuguesamentos do francês buff...