Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Sei que este espaço é um espaço dedicado à língua portuguesa, mas já li em muitos dos vossos artigos referências a transliterações ou traduções de línguas estrangeiras. Assim, e não querendo abrir precedentes para vós indesejáveis, rogava-vos veementemente apenas que me atestassem que «vera veritas» em latim é uma tradução aceitável para «a verdade verdadeira».

Resposta:

Confirmo que «vera veritas» se pode traduzir por «a verdade verdadeira». Veritas é o substantivo que está na origem do português verdade (mediante a forma vulgar veritate), e vera é um adjetivo que significa «verdadeira». Quanto à expressão «verdade verdadeira», encontramo-la registada por Orlando Neves, no seu Dicionário de Expressões Correntes (Lisboa, Editorial Notícias, 2000), onde lhe atribui o significado de «verdade incontestável». Uma expressão sinónima é «verdade, verdadinha» (cf. idem).

Pergunta:

Segundo o Dicionário Português-Latino, da autoria de Francisco Torrinha, e do Dicionário Latino-Português, da autoria de Santos Saraiva, arminho se traduz em latim por mus ponticus, literalmente «rato pôntico», isto é, rato da região do Ponto, Ásia Menor, a cuja fauna ele pertence. Apesar do nome, não se trata de um rato, mas de um mustelídeo. Certamente essa denominação latina deve-se ao fato de que, na imaginação dos romanos, o arminho, pelas suas formas físicas, fazia lembrar de um rato.

Por outro lado, os hodiernos dicionários da língua portuguesa dizem que a palavra arminho é proveniente da locução latina armenius mus, literalmente «rato armênio», certamente pelo fato desse animal fazer parte também da fauna da Armênia, país lindeiro com a sobredita região do Ponto. Embora os dicionários nada digam sobre a evolução da expressão, suponho que o segundo elemento da mesma, “mus”, desapareceu em algum momento, restando apenas o primeiro, “armenius”, o qual, ao longo dos séculos, evoluiu até tomar a forma atual, arminho.

Esta última denominação latina, “armenius mus”, não figura em nenhum dos dicionários latim-português e vice-versa que pude consultar, que, aliás, me parecem ser basicamente do latim da Antiguidade mais recuada, isto é, de alguns séculos antes de Cristo até os três primeiros séculos da nossa Era, o que me faz pensar que a razão dessa ausência se deve ao fato de que a expressão “armenius mus” talvez não seja desse período, mas de uma época posterior, de um latim tardio, da fase final da Idade Antiga (séculos IV ou V), talvez até mesmo medieval, uma vez que na Idade Média o latim continuava a ser usado em diversas atividades humanas, embora não fosse mais falado por nenhum povo no cotidiano.

Assim sendo, indago-vos se armenius mus, ori...

Resposta:

A expressão latina armenius mus não parece ter sido criada ou introduzida em latim clássico, dado que que não consta do Dictionnaire Gaffiot Latin-Français (1934), que dá primazia ao latim clássico, nem é registado por Charlton T. Lewis e Charles Short, em A Latin Dictionary (1879), cujas abonações são também maioritariamente de autores clássicos. A expressão que estas fontes registam é efetivamente, como diz o consulente, a expressão mus ponticus, ou seja, «rato do Ponto» (Ponto era a região no Norte da Ásia Menor, junto do mar Negro).

Sobre a etimologia de arminho, designação de um «mamífero carnívoro da fam. dos mustelídeos (Mustela erminea), encontrado na tundra euro-asiática e norte-americana; com cerca de 30 cm de comprimento, pelagem vermelho-acastanhada no verão e branca no inverno» e, por extensão de sentido, «[d]a pele ou o pêlo desse animal» (Dicionário Houaiss), José Pedro Machado, no seu Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (1987), dá a seguinte informação:1

«Do cast[elhano] armiño, este, por sua vez, do francês hermine, ermine no [francês?] arca[aico], da denominação armenius mus, «rato da Arménia», porque estas peles vinham das terras que naquele tempo ficavam englobadas na designação geral da Arménia, todas próximas do Mar [sic] Negro, o que justifica o nome de ponticus mus usado em lat[im] clássico para o mesmo produto. Séc. XIII: "Vi coteiffes com arminhos", Afonso X, o Sábio, em C.B.N. [= Cancioneiro da Biblioteca Nacional], N.º [436]. Como adj. no séc. XIV: "...era forrado en penna armiña... e a penna he mais delga...

Pergunta:

Habituei-me a ouvir, em Coimbra, a seguinte expressão «Não consigo com este peso» (em substituição de «Não posso com este peso»). Eu própria a utilizei e fui corrigida, o que agradeci.

No entanto, pedia o favor de me indicarem se a expressão está realmente incorrecta.

Resposta:

Recomendo-lhe «não posso com este peso». Como lhe aconselharam, evite empregar o verbo conseguir em contextos semelhantes.

Com a preposição com, o verbo poder tem dois significados, relativamente próximos (ver dicionário da Academia das Ciências de Lisboa):

«conseguir suportar determinado peso ou carga»: «Ainda pode com dez quilos em cada mão»;

«não gostar nada», «não conseguir suportar», «não aguentar»: «não posso com música aos berros».

Em relação a conseguir, não lhe é atribuído tradicionalmente nem este uso preposicional nem estes significados (cf. dicionário da Academia das Ciências de Lisboa e Dicionário Houaiss). A ocorrência deste verbo no contexto em questão deve-se provavelmente à afinidade semântica mantida com o verbo poder, uma vez que ambos os verbos podem assumir às vezes o sentido de «ser capaz» («não posso andar»/«não consigo andar»).

Pergunta:

Não encontro nos dicionários a palavra "desinformador". No entanto, encontro desinformar. Se existe informador, formado presumivelmente a partir de informar, por que razão não se poderá usar desinformador?

Resposta:

Apesar de não se encontrar no dicionário a palavra que menciona, não há nada que impeça o seu uso, por exemplo, numa frase como «tornou-se gritante o papel desinformador de certos meios da comunicação social», se com ela se pretender negar ou contestar que a comunicação social esteja globalmente a exercer de facto o seu papel informador. A consulente não pode, portanto, inferir da ausência deste ou daquele item lexical num dicionário que daí decorre a impossibilidade de usar tais palavras — muitas vezes trata-se simplesmente de lapso ou da consequência dos critérios de seleção do vocabulário a incluir num dicionário.

Deve insistir-se que os dicionários não têm de incluir todas as palavras, em todas as formas  possíveis e em uso; existe mesmo a tradição de não incluir certas palavras derivadas, cujos prefixos ou sufixos são muito produtivos. Sobre a maneira como os dicionários revelam critérios de economia na definição da lista de entradas (nomenclatura), comenta Margarita Correia em Os Dicionários Portugueses (Lisboa, Editorial Caminho, 2009, pág. 89):

«[...] [O]s dicionários não contêm normalmente as formas flexionadas das palavras, com excepção, em alguns casos, das flexões irregulares (como as flexões de alguns nomes terminados em -ão). Assim sendo, justifica-se que, tendo de deixar algumas palavras de fora, as primeiras a serem sacrificadas sejam aquelas que têm categoria, significado e usos altamente previsíveis a partir da sua estrutura interna. Exemplos de palavras deste tipo são os advérbios derivados com o sufixo -mente sobre a forma de feminino dos adjectivos, os adjectivos que provêm de formas de particípios passados verbais, muitos adjectivos construídos com os sufixos -vel e -nte sobre temas dos verbos, assim como muitas palavras derivadas por prefixação com os prefixos anti-, pró-,...

Pergunta:

Em inglês, o termo que designa a discriminação contra as pessoas com incapacidade (mental ou física) é ableism. Será que é adequado usar o termo "ableísmo" em português?

Resposta:

Nas fontes de que disponho, não encontro uma palavra que consiga, de modo sintético, traduzir o que se pretende dizer com ableism.1 O termo "ableísmo", não sendo impossível, apresenta problemas de aceitabilidade ortográfica, porque a sequência able- não é compatível com os princípios que definem a correspondência entre grafemas (as chamadas letras) e as unidades fónicas do português; a alternativa seria criar uma forma como "eiblismo", não atestada e, por enquanto, muito pouco transparente. Deste modo, considero que a solução é mesmo traduzir o termo inglês por uma perífrase, tal como se faz no Dicionário Inglês-Português da Porto Editora (versão em linha): «discriminação contra os deficientes». Em alternativa, para evitar a palavra deficiente, que entretanto adquiriu certa carga negativa, seguiria a própria tradução do consulente, ou seja, «discriminação contra pessoas com incapacidade».

1 A palavra ableism parece ser de uso relativamente recente em inglês, tendo a sua primeira ocorrência datada de 1981, segundo o Webster´s Online Dictionary.  Possui a particularidade de derivar de um adjetivo, able, ao contrário do que é habitual em derivados com o sufixo -ism, como racism e sexism, que têm nomes por base de derivação — neste dois casos, race e sex, respetivamente (cf. comentário em em The Rice University Neologisms Da...