Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
405K

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual é a forma mais correta de dizer: «em vista de», ou «em vista a»? A locução «com vistas em» pode ser empregada no mesmo contexto?

Resposta:

Usa-se «em vista de» (e não «em vista a») e «com vistas a» (ou «com vista a»), mas não se trata de locuções sinónimas. A primeira significa «tendo em conta que (acontece/se faz alguma coisa)», enquanto a segunda é equivalente a «tendo por finalidade (alguma coisa/fazer alguma coisa)». A expressão «com vista(s) a» é também usada no Brasil na linguagem jurídica, «como fórmula com que se submete um requerimento ou uma demanda a uma autoridade ou repartição [...] Ex.: "com v. ao Ministro"» (Dicionário Houaiss).

Cito Maria Helena de Moura Neves, Guia de Uso do Português — Confrontando regras e usos (São Paulo, Editora Unesp, 2003, s. v. vista):

«Em vista de é uma expressão iniciada pela preposição em, e com núcleo (substantivo) feminino singular sem artigo. EM VISTA DE seu bom comportamento na prisão, a pena foi reduzida para metade.»

«As expressões [com vista, com vistas a] terminam com a preposição a. Haverá crase (e acento grave) se à preposição a se seguir o artigo definido feminino a (a + a = à). [...] A expressão com vistas a é muito mais frequente (90%) [no contexto do corpus utilizado pela autora].»

Pergunta:

Fala-se em «investigação translacional», no sentido de, por exemplo, aplicar resultados de investigação básica à investigação clínica, e vice-versa. O termo translacional existe? Como se deve dizer, com aquele significado e falando da mesma coisa?

Resposta:

O adjetivo translacional está registado no Dicionário Houaiss com o significado de «relativo à translação». Por sua vez, a palavra translação significa, segundo o mesmo dicionário, «ato, processo ou efeito de transladar; transladação, trasladação», «movimento de um sistema físico no qual todos os seus componentes se deslocam paralelamente e mantêm as mesmas distâncias entre si» (em física) e «transmissão de direitos ou coisas da posse de uma pessoa para outra» (como termo jurídico); é ainda equivalente a tradução e metáfora. Deste modo, a expressão «investigação translacional» está correta e pode ser interpretada como «investigação que faz uma translação», sendo assim compatível com a definição proposta pelo consulente — «investigação que aplica resultados de investigação básica à investigação clínica, e vice-versa».

Pergunta:

Como pronunciar as palavras da família de cova, como covinha, coval, encovar? Na minha zona, ouço dizerem-nas sempre com o aberto. Tenho ouvido, porém, a maior parte dos corais cantar Fernando Lopes-Graça com o som u em coval, naquela canção das Heróicas, em que se fala de «os nossos heróis que dormem nos covais».

Agradeço a vossa sábia opinião.

Resposta:

No padrão do português europeu, as palavras derivadas de cova veem a vogal da primeira sílaba do radical (cov-) sofrer uma redução, de acordo com a regra do vocalismo átono do português europeu. Sendo assim, seguindo a regra, covinha, coval, encovar, como palavras derivadas de cova e por efeito da deslocação do acento tónico, soam como "cuvinha", "cuval" e "encuvar", respetivamente. Não obstante, observe-se que, regionalmente, há usos em Portugal que divergem desta norma, como acontece com os casos descritos pelo consulente: podem suscitar alguma estranheza em falantes do português-padrão, mas devem ser tolerados e não se pode dizer que estejam incorretos. 

Pergunta:

Agradeço a gentileza de me esclarecerem acerca de seguinte: ontem, durante a emissão de um programa realizado em Bragança, terra de fragas e fraguedos, a apresentadora Fátima Campos Ferreira, ao caraterizar a morfologia desta zona do país, referiu as «fráguas» deste «reino maravilhoso», em vez de «fragas». Conheço aquele termo desde os meus longínquos 16 anos, quando topei com ele no teatro vicentino. Para meu espanto, o Dicionário Houaiss apresenta frágua também com o valor de fraga. Tendo estas duas palavras origem tão diferenciada, como se pode explicar que se equivalham? Bem sei que a língua tem destas coisas... Mas a apresentadora não o disse apenas uma vez, e pareceu-me muito convicta. Preciosismo?

Bem hajam.

Resposta:

Recomendo, por razões etimológicas, o uso de fraga, para designar penedos ou conjuntos rochosos, mas não me parece que frágua seja claro erro de expressão.

O Dicionário Houaiss apresenta efetivamente a forma frágua como equivalente a fraga, que tem o seguinte comentário etimológico: «segundo Corominas, depreendido do adj[etivo] lat[ino] fragōsus, a, um, "áspero, escarpado, rochoso", registra-se no lat[im] h[i]sp[ânico] o subst[antivo] fragum, "local ou terreno de rochas e penhascos" (cf. cat[alão] e prov[en]ç[al] frau ou afrau "id."), de cujo pl[ural] fraga procede o port[uguês] e gal[e]g[o] fraga, "terreno escarpado e rochoso, penhasco, rocha".» Note-se, porém, que a variante frágua recebe, no dicionário em referência, uma nota etimológica que a remete para um homónimo, frágua, no sentido de «fornalha de ferreiro; forja» e, por extensão de sentido, «ardor, calor; fogo», cuja etimologia remonta a «lat. fabrĭca, ae, "oficina de ferreiro", segundo [Antenor] Nascentes através das f[ormas] *favrega, fravega (arc.), *fragova». É, pois, provável que frágua, como variante de fraga, seja o resultado da extensão semântica do homónimo frágua, «forja», talvez motivada pela semelhança fónica (paronímia) entre frágua e fraga.

Pergunta:

Antes de mais, muito obrigado pelo vosso excelente serviço.

Aqui no Algarve utiliza-se o termo "besaranha" para designar um vento forte e desagradável. Podem ajudar-me a perceber a sua origem e grafia correcta, com s ou com z?

Resposta:

A palavra em questão aparece registada no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) e no Vocabulário Ortográfico do Português (VOP) com a grafia buzaranha, com z. José Pedro Machado (Grande Dicionário da Língua Portuguesa) regista-a com a mesma grafia, com os significados de «grande ventania, vendaval» e, no plural, «coisas fantásticas, que se apresentam aos olhos de quem tem muita febre».

No entanto, a palavra tem sido recolhida em trabalhos sobre falares regionais portugueses, nem sempre mantendo a grafia acima, que é a normativa e a que deve ser usada. Saliento outros registos (mantenho as ortografias originais), que revelam também ter esta palavra variações regionais, fónicas e semânticas, como é o caso de "bezaranha", apresentado pelo consulente:

José Joaquim Nunes, "Dialectos algarvios (Lingoagem do Bárlavento1 [sic])", Revista Lusitana, VII, 1902, pág. 111: «busarãnha ou besarãnha, vento forte e aspero» 

Pombinho Júnior, "Vocabulário alentejano (subsídios para o léxico português)", Revista Lusitana, XXVI, 1925-1927, pág. 83: «buzaranha, s[ubstantivo] c[omum] de dois — Pessoa ou animal muito feio. O mesmo que rabuzana. — O pequeno, coitado, só os pais o podem achar bonito; êle é um buzaranha! (Colhido em Beja. Us[ado] em Beja e Serpa).

Abel Viana, Subsídios para Um Vocabulário Algarvio, separata da Revista de Portugal, 1954, pág. 18: «busaranha: "ventania forte e fria"»

...