Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Acabo de ler, numa crónica de Miguel Esteves Cardoso [em Os Meus Problemas], «esta mula russa gosta que a gente o chame Arquitecto». A minha dúvida prende-se com «mula russa». Deve ser «russa» ou «ruça»? E, já agora, conhecem a origem desta expressão tão interessante, que nunca tinha lido?

Muito obrigado!

Resposta:

É engano, pelo adjetivo ruça, «(de tom) pardacento ou acinzentado»1, quando referido a animais, e «loiro, castanho-claro», na descrição da cor de cabelo.

Não se sabe ao certo a origem da expressão. No Dicionário de Expressões Correntes (Lisboa, Notícias Editorial, 2000), Orlando Neves (1935-2005) dá uma explicação mais circunstanciada, mas não deixa de a assinalar como conjetural2:

«Doutor da mula ruça (tira o chapéu e põe a carapuça) – Designa pessoa de pouco valor que se dá ares de importante, uma espécie de charlatão.

Vários autores citam uma história acerca de um António Lopes, que exercia medicina e era muito popular em Évora. Este homem estudara na Universidade de Alcalá de Henares e aí obtivera o grau de bacharel. Requereu ao rei o grau de doutor pela Universidade de Lisboa para usufruir das mesmas vantagens dos diplomados por ela. O rei acedeu depois de o ter mandado examinar pelo seu físico-mor, doutro Diogo Lopes. Consta do livro Doações a carta régia de confirmação que foi passada a 2 de Maio de 1534 e está registada na Chancelaria de João 3.º: "Dom Joham 3.º A quantos esta minha carta virem faço saber que o douto Ant.º Lopes, físico d'Évora, me apresentou ua carta do doutor Dioguo Llopez,meu físico moor, de que o theor de verbo he o seguinte: "O doutor Dioguo Llopez, comendador da Ordem de XPO (Christo) e físico moor dellRey Nosso Senhor em seus regnos, e senhorios, faço saber a quantos esta minha carta de douctorado vyrem como por Antonio Loes, físico de mulla ruça, morador en esta d'Évora, me foy apresentado hum allvara dellRey noso senhor, per sua alteza asygnado e passado per sua chancellaria, da qual o trellado he o seguinte: Eu ell Reyfa...

Pergunta:

Por favor, qual a acentuação tónica na palavra Madagascar?

Obrigado.

Resposta:

Escreve-se Madagáscar, com acento agudo na sílaba -gas-, conforme se pode confirmar pelo Vocabulário da Língua Portuguesa (1966) de Rebelo Gonçalves, pelo Vocabulário Onomástico da Língua Portuguesa (1999) da Academia Brasileira de Letras e, mais recentemente, pelo Código de Redação do português nas instituições europeias.

Contudo, também é possível Madagascar, sem acento gráfico, portanto, com acento tónico na sílaba -car, como se comenta no Dicionário Houaiss: «[...]em português o nome grafa-se Madagascar ou Madagáscar: Madagáscar, paroxítona, adotada em Portugal, já se registra nos Lusíadas (X, 137, 8); Madagascar, oxítona, seria preferível pela analogia com numerosos oxítonos em -ar da língua portuguesa, dentre os quais outros nomes de origem malaia, como Zanzibar, Malabar, Macassar, todos pronunciados com acento oxítono.»

Registe-se que, em Portugal, há muito que a forma Madagascar é rejeitada. Em Topónimos e Gentílicos (1941), de Xavier Fernandes, Madagascar figura entre as «formas estrangeiras ou mal aportuguesadas» (p. 65). No Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa (1947), Rebelo Gonçalves é perentório: «Proscreva-se...

Pergunta:

Não sei se é só no Brasil, mas aparece-me que é de comum acordo aqui que feito pode agir como conjunção.

Por exemplo: «Meu pai está feito um padre»; ou «Ele chorou feito uma mulherzinha».

É correto dizer isto? Não será o caso de uma inversão de termos («Feito uma mulherzinha, ele chorou»/ «Feito um padre, meu pai está»)? Se for conjunção, a norma abona o uso?

Resposta:

É uso que se aceita como característico da língua popular, mas que geralmente se rejeita quando se trata de falar e escrever formalmente. Quanto à necessidade de inversão, é esta possível, mas sem constituir de maior ou menor gramaticalidade.

O Dicionário Houaiss consigna o uso de feito como conjunção, identificando-o como brasileirismo: «conjunção (...) conjunção comparativa.  Regionalismo: Brasil. (...) como, do mesmo modo que, tal qual. Ex.: trabalha f. burro de carga.» O Dicionário Priberam regista esta função conjuntiva de feito: «conjunção (...). [Brasil] Usa-se para ligar frases por subordinação e indica comparação (ex.: o ódio alastrou feito uma epidemia; soldados choravam feito crianças).»

A linguista brasileira Maria Helena de Moura Neves confirma que «o particípio passado de fazer é forma verbal gramaticalizada, na linguagem coloquial, como conjunção comparativa ("como"): "Deixou a gente largada no mundo, feito cachorro sem sono, casou e foi morar na roçada sogra dele. (...)"»(Guia de Uso do Português, Editora Unesp, 2003).

Este uso é conhecido em Portugal, mas parece menos frequente (a secção histórica do Corpus do Português não faculta atestações) e não exatamente com a mesma sintaxe. Com efeito, observa-se que, entre falantes portugueses, feito pode ocorrer com função descritiva, mas sujeitando-se às regras da concordância: «Fiquei à espera fei...

Pergunta:

Corre em Portugal usarem o pronome de caso reto ele como objeto? Por exemplo: «Eu amei "ela".»

Foi uma invenção do Brasil ou teve origens com os portugueses que cá vieram?

Resposta:

É uma tendência que já devia existir na língua à data da independência do Brasil1.

Hoje em dia, no português falado em Portugal, nota-se que é frequente ocorrer ele/ela no lugar de o/a depois de verbos de perceção (ver, ouvir) e verbos causativos (mandar, deixar):

(1) Vi ele maltratar o cão. [em vez do correto «vi-o maltratar o cão]

(2) Deixou ele ir sozinho ao médico. [em vez do correto «deixei-o ir sozinho]

Observe-se, porém, que, mesmo coloquialmente, é rara ou nula a ocorrência de ele/ela com a função de complemento direto em frases simples e orações finitas. Na fala espontânea, diz-se, portanto, «vi-o/a ontem» e «deixei-o/a aqui».

Parece, portanto, que o português coloquial do Brasil generalizou esta tendência a todos os contextos de objeto direto.

 

1 Cf. Gramática do Português, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2013-2020, p. 2257.

Pergunta:

Ultimamente ouço pessoas (sobretudo adolescentes, em particular o meu filho) usar a expressão “meter graça”.

Não me parece uma alternativa correta à expressão “ter graça” e gostaria de pedir o vosso esclarecimento.

Obrigado.

Resposta:

A forma tradicional e correta da locução em apreço é «ter graça».

Como se sabe, muitos adolescentes costumam empregar termos do calão e da gíria, bem como inovações (deturpações e verdadeiras inovações) lexicais e sintáticas, de maneira a afirmarem-se como indivíduos e como grupo perante as convenções dos adultos – da família à escola e às autoridades.

Em lugar de «ter graça», que continua a ser a forma que a locução tem e deve ter, documenta-se, na verdade, a expressão «meter graça», por exemplo, numa canção rap do cantor Sam, the Kid.