Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

No estudo das palavras compostas numa turma do 5.º ano de escolaridade, surgiu a seguinte dúvida: uma vez que, ao abrigo do novo acordo ortográfico, nas palavras como fim-de-semana, cor-de-vinho ou fios-de-ovos suprime-se a grafia do hífen, considera-se, da mesma forma, que são palavras compostas, ou a terminologia é deferente? Tenho a impressão de que os alunos poderão perder, de certa forma, a noção de palavra se classificar, por exemplo, fim de semana como uma palavra composta. Desde já agradeço a vossa colaboração.

Resposta:

As palavras fim de semana, cor de vinho ou fios de ovos continuam a ser compostos.

Se o hífen não é critério para distinguir palavras derivadas de palavras compostas (infeliz vs. guarda-roupa, mas pré-história, com prefixo), então também não o deve ser para rejeitar fim de semana como palavra composta. Por outras palavras, há expressões que contêm elementos de ligação, não têm hífen e são também compostos — morfossintáticos, como neste caso. Note-se que o próprio Dicionário Terminológico apresenta como composta uma expressão sem elemento de ligação como via láctea (muito embora se trate de palavra tratada como nome próprio, que exige maiúsculas iniciais: Via Láctea — cf. Dicionário Houaiss).

Esta situação dificulta, sem dúvida, o reconhecimento de tais compostos, porque passam a confundir-se com outras expressões que não se usam como unidades lexicais, mantendo a sua composicionalidade (isto é, a autonomia semântica dos seus elementos; cf. pôr do sol, palavra composta vs. «livro do rapaz», expressão constitutiva de um grupo nominal em «o livro do rapaz caiu ao chão»).

Sei, contudo, que a prática lexicográfica (ver Dicionário Houaiss de 1999) leva a que estes compostos que incluem preposições não tenham entrada própria, mas apareçam como subentrada de uma das palavras constituintes: ou seja, o composto fim de semana encontra-se no verbete correspondente a fim ou a semana. Não é assim, porém, que o

Pergunta:

Em sessões de trabalho sobre a classe de palavras, segundo o DT, surgiram dúvidas sobre o advérbio relativo, pois apresentam-se como e onde como pertencendo a essa categoria.

Sendo que a primeira é de fácil aplicação («A rua onde moro é ladeada por árvores»), não entendo em que contexto pode surgir a segunda com esta função.

Resposta:

No Dicionário Terminológico, apenas onde é classificado como advérbio relativo. No entanto, em gramáticas que adotam esta nova terminologia, surge como classificado também como advérbio relativo; é o caso de Da Comunicação à Expressão — Gramática Prática de Português (Lisboa, Lisboa Editora, 2011, pág. 258/259), de M.ª Olga Azeredo, M.ª Isabel Freitas M. Pinto e M.ª Carmo Azeredo Lopes, que fundamentam essa classificação do seguinte modo: 

Advérbio relativo

A casa onde Adrian Mole vive fica distante da escola.

Adrian queixou-se da maneira como a rapariga o tratou.

Onde e como são advérbios relativos já que introduzem uma oração subordinada relativa e ao mesmo tempo permitem identificar uma relação estabelecida com o nome antecedente:

— no primeiro exemplo, casa → Adrian Mole vive nessa casa

— no segundo exemplo, maneira → A rapariga tratou-o dessa maneira.

Pergunta:

Como se divide e classificam as orações destes versos de Os Lusíadas?
«Cesse tudo o que a Musa antiga canta, que outro valor mais alto se alevanta.»

Resposta:

Tendo em conta o tipo de análise que o Dicionário Terminológico pressupõe, proponho a seguinte análise:

Oração subordinante: «cesse tudo o que a Musa antiga canta»;

oração subordinada adjetiva relativa: «(o) que a Musa antiga canta»;

oração subordinada adverbial causal: «que outro valor mais alto se alevanta».

1 Sobre «o que», ver os Textos Relacionados.

Pergunta:

Gostaria de saber se é correta a expressão «o discernir dos valores».

Peço também esclarecimentos sobre a regência de discernir.

 

Resposta:

O verbo discernir é usado como verbo transitivo direto — ou seja, seleciona um grupo nominal que desempenha a função sintática de complemento direto («discernir alguma coisa» = «ser capaz de distinguir», «perceber com clareza») — e como intransitivo (no sentido de «ter capacidade de raciocínio»), conforme ilustram os seguintes exemplos retirados do dicionário da Academia das Ciências de Lisboa (s. v. discernir; sublinhado meu):

a) «Era um conhecedor de pintura portuguesa contemporânea e era capaz de discernir um original no conjunto de cópias mais perfeitas» (transitivo direto);

b) «Estava tão cansado, que já nem conseguia discernir» (intransitivo).

Relativamente à dúvida sobre a correção da expressão «o discernir dos valores», diga-se que é gramatical, mas nela o verbo discernir é usado como substantivo, num processo tradicionalmente chamado substantivação ou, numa perspetiva mais recente, conversão (ver Dicionário Terminológico).

Pergunta:

A frase «à altura da relva» é utilizada pelos meteorologistas para definir o local de algumas medições. Utiliza-se, no entanto, também, para caracterizar um pensamento, dando um sentido de «baixo», «rasteiro», depreciativo e pejorativo para a pessoa que o expressa.

Agradeço-vos uma análise cuidada da frase seguinte (tenho dúvidas na utilização do plural, na maiúscula inicial e na concordância da contracção da preposição com o artigo) e, ainda, que me informem se ela cumpre as regras gramaticais, mantendo ou aumentando a intenção semântica da frase anterior: «à altura do Relvas».

Obrigado.

Resposta:

Pouco tenho a acrescentar ao que o consulente já sabe, a não ser assinalar que a locução prepositiva «à altura» não tem necessariamente sentido depreciativo ou pejorativo. É para o que aponta o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, nas subentradas correspondentes ao lexema altura:

«estar à altura de alguém, estar ao mesmo nível que outrem, em termos de capacidades, conhecimentos... estar à altura de alguma coisa, ser capaz de; ter ânimo, conhecimentos ou competência para resolver ou enfrentar uma situação. «Quem vai saber se estou se estou à altura de ser primeiro-ministro é o eleitorado» [...]. mostrar-se à altura de alguém, o m[esmo] que estar à altura de  alguém. mostrar-se à altura de alguma coisa, o m[esmo] que estar à altura de alguma coisa. [...] portar-se à altura, agir conforme exigem as circunstâncias, a situação; comportar-se devidamente, como deve ser. responder à altura, responder em termos equivalentes àqueles em que se foi interpelado.»

Estas definições são confirmadas pelo Dicionário Houaiss e pelo Aulete Digital, que de forma mais sucinta registam a locução «à altura» e a expressão «responder à altura» como subentradas de altura.

Ou seja, «à altura» significa genericamente «ao mesmo nível». Se o nível em referência é baixo ou alto, já se trata de uma avaliação prévia da pessoa, coisa ou situação que são termos de comparação.