Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Agradeço ao prezado senhor e deleto mestre Carlos Rocha pela resposta «A colocação dos pronomes» que mui satisfatoriamente me redigiu.

Ainda com o escopo de perscrutar algumas questões que não me foram dissolvidas, fui consultar a Moderna Gramática Portuguesa sobre as normas de sínclise. Lá, na pág. 587, Evanildo Bechara faz referência aos estudos de Manuel Said Ali Ida, um magistral sintaxista da língua portuguesa.

Transcrevo-lhe o trecho que se me deparou: «Durante muito tempo viu-se o problema apenas pelo aspecto sintático, criando-se a falsa teoria da ‘atração’ vocabular do ‘não’, do ‘quê’, de certas conjunções e tantos outros vocábulos. Graças a notáveis pesquisadores, e principalmente a Said Ali, passou-se a considerar o assunto pelo aspecto fonético-sintático.»

Ainda na pág. 591, Bechara nos remete a um comentário do prof. Martinz de Aguiar, que transcrevo: «A colocação de pronomes complemento em português não se rege pela fonética, nem é o ritmo, o mesmo binário-ternário, em ambas as modalidades, brasileira e lusitana, que impõe uma colocação aqui, outra ali, não. Ela obedece a um complexo de fatores, fonético (rítmico), lógico, psicológico (estilístico), estético, histórico, que às vezes se entreajudam e às vezes se contrapõem.»

Evanildo Bechara, Moderna Gramática Portuguesa (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2009, pág. 587-591).

Diante disto, gostaria de saber, se não se aplicam mais regras baseadas em atração, em parte, a que outros factores poder-se-ia recorrer para elaborar construções corretas, quanto à sínclise? Como a norma culta tem se comportado diante destas descobertas? Como se pode expandir a explicação do prof. Martinz quando cita o «complexo de fatores...

Resposta:

As perguntas feitas são pertinentes, mas ultrapassam o âmbito do tipo de respostas dadas no Ciberdúvidas, porque já lidam, por um lado, com a discussão de um problema teórico e descritivo, que é o do estatuto clítico dos pronomes átonos, e a relação da norma com os dados evidenciados pela descrição linguística. 

De qualquer modo, há que ter em atenção que, considerando as variedades do português, existe, como já tem sido dito, em comum o facto de estes pronomes ocorrerem na adjacência de um hospedeiro verbal, muito embora se observe um contraste nítido entre português europeu e português brasileiro quanto à colocação dos clíticos em relação a esse hospedeiro (ver M.ª Helena Mira Mateus et al., 2003, Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, Editorial Caminho, 2003, pág. 847):

— no português europeu, a posição dos pronomes clíticos depende em grande parte de atratores da próclise;

— a respeito do português do Brasil, as descrições apontam um menor papel dos atratores da próclise, realçando a tendência para a próclise sistemática na coloquialidade e mesmo no registo formal, enquanto em situações de escrita e oralidade mais formais podem ocorrer a próclise ou a ênclise, mais uma vez, nem sempre em congruência com o que se verifica na variedade europeia.

Quanto a bibliografia, recomendo a leitura da Gramática da Língua Portuguesa (Lisboa, Editorial Caminho, 2003, págs. 826-867) sobre tipologia e colocação dos clíticos.

Pergunta:

Gostaria de saber se a palavra quero é um dígrafo (qu), ou considera o ue como ditongo.

Outra dúvida: a palavra brutais é um hiato?

E na palavra necessárias tem-se um ditongo crescente?

Resposta:

O Dicionário Houaiss define dígrafo como «grupo de duas letras us[adas] para representar um único fonema», incluindo na exemplificação as sequências «gu e qu antes de e e de i». Deste modo, é óbvio que a palavra quero apresenta o dígrafo qu. Note a consulente que se diz que «a palavra X apresenta, inclui, integra um dígrafo», e não que ela «é um dígrafo», porque, como vimos, os dígrafos são sequências de letras — e nunca palavras.

Quanto à segunda palavra, também se diz que inclui um ditongo, ai, e não que ela é um ditongo. Trata-se de um ditongo, porque a sequência vocálica ai pertence à mesma sílaba; se assim não fosse, então, sim, estaríamos na presença de um hiato, como no caso de cair, onde a sequência representada por ai se divide por sílabas diferentes (ca.ir).

Finalmente, sobre necessárias, considera-se que, em fala rápida, se produz um ditongo crescente, ia (em transcrição fonética [jɐ]).

Pergunta:

«Eram meados de junho», ou «Era meados de junho»? Qual é a concordância correta?

Resposta:

A concordância correta é «eram meados de junho», com o verbo ser no plural, seguindo o exemplo de outras expressões de tempo, em especial, na referência às horas: «São onze horas.» Este uso está descrito na Nova Gramática do Português de Contemporâneo (1984, p. 503), de Celso Cunha e Lindley Cintra, que analisam este tipo de frases como orações impessoais onde o verbo ser concorda com o predicativo.

Pergunta:

Gostava de saber ao certo qual é a pronuncia recomendada da palavra torpe (quer no sentido de «entorpecimento» como no de «desonesto» ou «indigno»).

Querendo confirmar uma pronúncia estranha que ouvi a um jornalista da RTP, deparei-me com registos divergentes tanto no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, como no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, assim como no ainda tão respeitável Vocabulário da Língua Portuguesa, de Rebelo Gonçalves.

Resposta:

A forma torpe corresponde a duas palavras que podem ser homógrafas (mesma grafia, pronúncia diferente) ou homónimas (mesma grafia, mesma pronúncia):

—  Torpe1, «que entorpece»,1 parece derivado regressivo de torpecer (Dicionário Houaiss),2 ocorrendo em contextos como os seguintes: «o calor torpe do verão»; «as mãos torpes com o ar gelado da noite» (atestações do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa).

A respeito desta palavra, as transcrições fonéticas disponíveis em dicionário não coincidem: no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa (ACL), o adjetivo surge transcrito com o fechado ([tóɾpɨ]) , mas o Grande Dicionário da Língua Portuguesa (GDLP) da Porto Editora transcreve-o com o aberto ([ˈtɔɾpə]).3 

Torpe2, «ignóbil, indecoroso, infame», cuja etimologia remonta ao latim turpis, e, «disforme, desfigurado, feio; fig. vergonhoso, desonroso, ignóbil» (Dicionário Houaiss), é usado, por exemplo, na frase «nada me estimula mais do que a provocação torpe e soez» (exemplo retirado do corpus CETEM/Público, Linguateca). Este vocábulo figura transcrito com o fechado ...

Pergunta:

Gostaria de saber se utilizamos o termo vegan em português e, se sim, como devemos formar o plural. Será «os vegans»? Caso não utilizemos, qual o equivalente?

Resposta:

Usa-se a palavra vegan como anglicismo, cujo plural é vegans (cf. o Oxford Advanced Learner´s Dictionary). O vocábulo tem aportuguesamento morfológico: vegano, no plural veganos (cf. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa).1

1 Resposta alterada na sequência de um reparo enviado pela Associação Vegetariana Portuguesa, a quem agradeço o esclarecimento, que me levou a encontrar a atestação de vegano num dicionário português.