Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Tenho-me deparado, em diversos textos em língua inglesa, com as expressões underreaction (underreact) e overreaction (overreact) designando que a reacção observada foi mais exagerada e mais branda do que o esperado, respectivamente.

Qual será a melhor tradução para estas expressões?

Desde já obrigado e parabéns pelo excelente trabalho em prol da língua portuguesa.

Resposta:

Não parecem existir palavras simples para traduzir os dois substantivos em questão. É, portanto, difícil indicar uma tradução consagrada, definida como a melhor, pelo que muito dependerá do contexto em que se terá de avaliar a transposição para o português.

De qualquer modo, cabe referir que, de acordo com o Linguee, a tradução mais frequente de overrreaction é feita por meio de uma perífrase constituída por substantivo e adjetivo: «reação exagerada, excessiva, exacerbada». Quanto a underreaction, a referida fonte não faculta informação sobre o português, mas dá uma pista, se bem que escassa, em espanhol— «reaccionar pasivamente». Deste modo, tendo em conta a tradução espanhola, a equivalência de underreaction com «reagir passivamente» poderá ser uma solução, muito embora não exista um vocábulo simples fixado em português.

Pergunta:

Vendo a resposta 29 518, observei que alerta pode também empregar-se como adjetivo. Ora, o famoso gramático Napoleão Mendes de Almeida já asseverava no seu Dicionário de Questões Vernáculas que alerta, entre outras funções, pode usar-se como adjetivo e, portanto, pode e deve flexionar-se no plural. Como, então, poderá manter-se o ensinamento da invariabilidade dessa palavra? Ter-se-ia enganado o professor Napoleão?

Resposta:

As opiniões dividem-se quanto à classificação de alerta. Alerta é palavra classificada como interjeição, advérbio, adjetivo e substantivo por Maria Helena Moura Neves (Guia de Uso do Português), podendo, como adjetivo, apresentar flexão de plural. No entanto, Evanildo Bechara, na sua Moderna Gramática Portuguesa (37.ª edição, p. 553), afirma que «[h]á uma tendência para se usar desta palavra como adjetivo, mas a língua-padrão recomenda se evite tal prática». Em obras publicadas em Portugal, considera-se que alerta é sobretudo interjeição, advérbio ou substantivo (cf. dicionário da Academia das Ciências de Lisboa), embora haja autores que também o incluam entre os adjetivos de dois géneros, deixando supor que o vocábulo tem plural.

Sendo assim, não é que Napoleão Mendes de Almeida se tenha enganado – o que existe são perspectivas diferentes. Por outras palavras, o «ensinamento da invariabilidade desta palavra», para usar a expressão do consulente, pode manter-se, porque outros gramáticos e lexicógrafos que não Napoleão Mendes de Almeida têm uma perspectiva diferente.

Pergunta:

Gostaria que me esclarecessem uma dúvida (comum a várias colegas professoras de Português).

No manual Página Seguinte da Texto Editora do 11.º ano, página 332, numa secção informativa de Funcionamento da Língua, num quadro de orações completivas não finitas, consta o seguinte exemplo: «A Manuela apreciou visitar o Museu da Música.» A oração destacada como completiva não finita é, pois, «visitar o Museu da Música». A nossa dúvida reside nesta classificação, na medida em que nos parece que o verbo visitar, por estar no infinitivo impessoal e não ser antecedido por nenhuma conjunção (que, se, para...) ou pronome relativo, não pode formar oração. Ou seja, parece-nos ser a frase simples e não complexa. Sendo duas orações, qual seria o sujeito da segunda?

Antecipadamente gratas pelo vosso esclarecimento.

Resposta:

Trata-se mesmo de uma oração completiva de infinitivo, ou seja, este tipo de orações não tem de ser introduzido por conjunções. Também não é de admirar que o infinitivo não esteja fletido, porque ocorrem outros casos semelhantes, como o de gostar: «Gosto de visitar museus.» Sobre este verbo, que é de certo modo um sinónimo de apreciar, observam J. A. Peres e Telmo Móia, em Áreas Críticas da Língua Portuguesa (Lisboa, Editorial Caminho, 1995, pág. 113):

[...] [O]s argumentos oracionais infinitivos de gostar [...] – e bem assim os argumentos pronominais e nominais – são obrigatoriamente preposicionados:

(380) O Paulo gosta de ser elogiado/disso. [...]

Refira-se que, na análise de um grupo verbal formado por verbos psicológicos como apreciar, gostar ou volitivos como querer, associados a um infinitivo, se considera que os dois verbos constituintes desse grupo têm sujeitos correferentes: «eu gosto de sair» (interpretável como «eu gosto (de) que eu saia»1). O mesmo sucede com um verbo psicológico: «eu penso sair mais tarde» (= «eu penso que saio mais tarde»)

Convém ainda reiterar que a ocorrência de conjunção não é condição para a seleção de uma oração completiva. Basta lembrar que as orações completivas de infinitivo flexionado não são introduzidas por conjunções, podendo muitas começar por preposições: «ouvi as crianças chorarem»; «o tema levou-os a discutirem.»

1...

Pergunta:

Nas frases «Eu tenho o cabelo molhado» e «O carro tem o pneu furado», qual a função sintática desempenhada por molhado e furado?

Eu entendo que será o nome predicativo do complemento direto, apesar de o verbo ter não pertencer à lista dos verbos que exigem PCD. No entanto, as frases tornam-se agramaticais sem este constituinte.

Resposta:

Trata-se efetivamente de um predicativo do complemento direto.

Note-se, contudo, que a agramaticalidade decorrente da supressão deste predicativo advém do facto de o verbo ter ocorrer numa construção resultativa (ter alguém, alguma coisa + particípio passado). Por outras palavras, a presença de um verbo numa lista de itens com determinado comportamento sintático não impede que esse mesmo verbo apareça noutras estruturas, associado a outros valores semânticos, podendo, por isso, pertencer a outros elencos.

Assinale-se que Inês Duarte e Fátima Oliveira se referem a essa construção com particípio passado ("Particípios resultativos", XXV Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística, pp. 397-408):

[...] o português dispõe igualmente de uma construção resultativa encabeçada pelo verbo leve ter, em que o argumento interno directo entra num estado resultante de um evento prévio.

Num estudo sobre o particípio passado em português (Marcin Wlodek, "O particípio português — formas e usos", in Romansk Forum, n.º 17, 2003, pp. 43-53), descreve-se esta estrutura, também selecionada por outros verbos:

[...] o particípio é muito usado como elemento predicativo ligado ao complemento directo dos verbos ter, trazer, levar e deixar. Nestes casos focaliza-se o estado atribuído ao complemento mediante um particípio que concorda com este em género e número:

Pergunta:

Minhas saudações à mui dileta equipe de Ciberdúvidas. Confesso-lhes que senti falta, e até saudades, de suas atualizações – nesse período de recesso –, dada a assiduidade com que lhes consulto e tamanho contributo que vem prestando, louvavelmente, ao estudo de nossa língua.

Desta vez, gostaria que me auxiliassem nesse exercício de colocação pronominal. Tive algumas dúvidas sobre esse tema.

I. Assinale a alternativa cuja colocação pronominal está incorreta.

(A) Preciso que venhas ver-me.

(B) Procure não desapontá-lo.

(C) O certo é fazê-los sair.

(D) Sempre negaram-se tudo.

(E) As espécies se atraem.

Obs. 1: Tive dúvida na alternativa (B) e (C). Os advérbios não e sempre não são termos atrativos? Isso não levaria a uma próclise?

II. A frase em que a colocação do pronome átono está em desacordo com as normas vigentes no português padrão do Brasil é:

(A) A ferrovia integrar-se-á nos demais sistemas viários.

(B) A ferrovia deveria-se integrar nos demais sistemas viários.

(C) A ferrovia não tem se integrado nos demais sistemas viários.

(D) A ferrovia estaria integrando-se nos demais sistemas viários.

(E) A ferrovia não consegue integrar-se nos demais sistemas viários.

Obs. 2: Suponho que em (B) deveria ser uma mesóclise. Por que o advérbio de negação não não atraiu o pronome

Resposta:

No Ciberdúvidas, há muitas respostas sobre colocação de clíticos, tanto numa perspectiva global como na ótica do contraste entre o português do Brasil e o de Portugal (ver Textos Relacionados). Mesmo assim, vou procurar responder, seguindo a ordem de perguntas do consulente:

I. Onde o consulente diz «opção B», deve muito provavelmente ler-se «opção D», porque é esta que apresenta o advérbio sempre. Sendo assim, a resposta é afirmativa: não e sempre são atratores da próclise.

II. Em B, a forma "deveria-se" está incorreta, devendo ser substituída por uma forma em que o pronome se encontra ligado ao auxiliar, em mesóclise, se não for antecedido de um atrator da próclise: «dever-se-ia». Isto não exclui que o pronome esteja ligado ao verbo principal: «deveria integrar-se». A respeito da opção C, são possíveis duas formas: «A ferrovia não se tem integrado nos demais sistemas viários» (português do Brasil e português de Portugal); «A ferrovia não tem se integrado nos demais sistemas viários» (aceitável só no Brasil, segundo Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 1984, pág. 317). Quanto a E, são possíveis três formas: «A ferrovia não consegue integrar-se nos demais sistemas viários» (comum às duas variedades); «A ferrovia não consegue se integrar nos demais sistemas viários» (apenas no Brasil, cf. ibidem); «A ferrovia não se consegue integrar nos demais sistemas viários» (colocação mais discutível, por causa do estatuto menos claro de conseguir como auxiliar; cf. Anabela Gonçalves e Teresa da Costa, (Auxiliar a) Compreender os Verbos Auxiliares, Lisboa; Edições Colibri/Associação de Professores de Português, 2002, págs. 83-89).