Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Eu gostaria de saber mais sobre a origem da palavra saudade. Vasconcellos, 1914, afirma que sua origem teria a ver com solidão, do latim solitas, e que teria incorporado elementos de «salvação», «saúde», «saudação». Há também uma hipótese que teria surgido do árabe. Os árabes haveriam traduzido a melancolia do grego (bile negra) para sua língua e a saudah (negro, preto em árabe) teria originado a saudade portuguesa. O que lhes parece? Será que a palavra teria sido consolidada em 1580 pelos grandes escritores portugueses de então?

Ficarei muito grato por vossa resposta.

Resposta:

O que se sabe sobre a etimologia de saudade já foi bastante debatido aqui no Ciberdúvidas. De qualquer maneira, a etimologia mais provável é de origem latina, em solitate, que deu soidade (ainda em uso em galego), que passou a saudade por analogia com saúde, podendo ter havido aqui um processo de elaboração e fixação literárias do termo.

A hipótese árabe tem sido defendida sem sucesso. No entanto, refira-se que negro, em árabe clássico, é سَواد (sawād), que corresponde, entre outros nomes, a سُوَيْداء (suwaydaʔ) «humor negro, hipocondria, melancolia» (Dictionnaire arabe-français/français-arabe, Larousse, 2006), palavra que poderá ter alguma semelhança fónica com a forma galego-portuguesa soidade. Talvez haja realmente aqui influência do árabe, mas não tenho acesso a estudos filológicos cuidadosos que a confirmem.

Cf.: 3 palavras que não se conseguem traduzir

Pergunta:

Tenho uma dúvida em relação à pronúncia das consoantes. Assim como em espanhol, onde existem os seguintes alofones:

/b/ -< [b], [β]

/g/ -< [g], [γ]

/d/ -< [d], [ð]

em português (especialmente o lusitano) também existem esses casos?

Resposta:

Existem, pelo menos, em grande parte dos dialectos do português europeu, incluindo a norma-padrão, em posição intervocálica. Segundo Maria João Freitas, "O conhecimento fonológico" (in Inês Duarte, Língua Portuguesa: Instrumentos de Análises, Lisboa, Universidade Aberta, 2000, pág. 231), trata-se de alofones dos fonemas /b/, /d/ e /g/:

[H]á alguns fonemas com mais do que uma realização fonética possível (alofones): é o caso de /b/, com os alofones [b] e [β]. Em seguida, enunciam-se alguns fonemas do português que apresentam mais do que uma realização fonética possível, os alofones desse fonema, identificados pela não alteração de significado após a comutação dos sons:

Exemplos de alofones no português    

Pares mínimos         Ortografia          Fonemas e respectivos alofones

[ˈabɐ]/[ˈaβɐ]            <aba>/<aba>        /b/  -  [b]/[β]

[ˈfadɐ]/[ˈfaðɐ]          <fada>/<fada>      /d/  -  [d]/[ð]

[ˈagɐtɐ]/[ˈaγɐtɐ]      <ágata>/<ágata>    /g/  -  [g]/[γ]

Sobre os sons [β], [ð] e [γ], a mesma investigadora esclarece o seguinte (ibidem, n. 26):

Em termos articulatórios, os sons dos pares [b]/[β], [d]/[ð] e [g]/[γ] são semelhantes entre si, excepto no tipo de obstrução à passagem do ar na cavidade oral: [b, d, g] são oclusivas, logo, são produzidas com obstrução...

Pergunta:

«Cada coisa é uma palavra. E quando não se a tem, inventa-se-a. Esse vosso Deus que nos mandou inventar» — Clarice Lispector (A Hora da Estrela).

No excerto acima, «não se a tem» e «inventa-se-a» são combinações incorretas de pronomes? Por que elas soam tão naturais e inteligíveis, se, de acordo com esta resposta, estariam supostamente incorretas?

Gostaria de um esclarecimento mais detalhado, por favor.

Resposta:

Pouco há a acrescentar ao que já se disse anteriormente. Geralmente, não se aceita a sequência formada por se, com valor de partícula apassivadora ou sujeito indeterminado, e o pronome pessoal átono de objecto directo o, como se lê na Moderna Gramática da Língua Portuguesa (2002, pág. 180), de Evanildo Bechara:

A língua-padrão rejeita a combinação se o (e flexões, apesar de uns poucos exemplos na pena de literatos:

«Parece um rio quando se o vê escorrer mansamente por entre as terras próximas...»

Os usos identificados na obra em apreço são, portanto, excepções literárias à regra da língua padronizada.

Pergunta:

A respeito do comentário em «O Nosso Idioma» Bitaite e bitaitar, de Paulo J. S. Barata, hoje, temos no Brasil uma palavra de significado semelhante, também de origem obscura, tida como regionalismo paraibano, mas que nenhum brasileiro desconhece: é o "pitaco", a opinião dada por quem, normalmente, conhece pouco ou nada de um assunto, mas que faz questão de palpitar, geralmente com disparates. Teria algo a ver com o sábio grego Pitacòs, que era useiro e vezeiro em criar citações sobre assuntos os mais variados, mormente sobre comportamento? Curiosamente, os dicionários gerais brasileiros ainda não a registram.

Resposta:

De facto, a palavra não se encontra registada nos dicionários gerais consultados (Houaiss, Aulete Digital, Moderno Dicionário da Língua Portuguesa Michaelis, Priberam). No entanto, o Wikcionário acolhe-a:

«Palpite nem sempre fidedigno. Intromissão em conversa alheia. Coisa de palpiteiros e intrometidos.»

Também não posso confirmar a etimologia proposta, apesar da sua plausibilidade. Há quase identidade fónica entre pitaco e o antropónimo Pítaco, mas existe também certa relação semântica, visto a figura assim chamada ter ficado conhecida pelas suas sentenças. Mas importa referir a disponibilidade em espanhol do vocábulo pitaco, «caule da piteira», que poderia ter alguma relação com a palavra paraibana, no contexto da colonização ibérica da América do Sul.

1 Forma recomendada. Cf. M.ª Helena T. C. Ureña Prieto et al. Do Grego e do Latim ao Português, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian/Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, 1995, pág. 161.

Pergunta:

Após ler seu artigo sobre o assunto, continuo na dúvida sobre a tradução de um termo em inglês que deverá se repetir muitas vezes role-model (profissional, empresa, candidato, organização, etc.).

1. Devo usar hífen, ou não?

2. Como fica a flexão no plural?

Ex.: «profissionais(-)modelo», ou «profissionais(-)modelos»;

«candidatos(-)modelo», ou «candidatos(-)modelos»;

«empresas(-)modelo», ou «empresas(-)modelos»?

Estes termos serão usados em todo o material de comunicação da empresa, daí a minha preocupação em evitar erros crassos.

Desde já agradeço.

Resposta:

1. A pergunta que faz diz respeito à gramática da língua inglesa. Da consulta de três dicionários de inglês — dois britânicos, o Oxford Advanced Learner´s Dictionary e o Cambridge Advanced Learner´s Dictionary, e um norte-americano, o Merriam-Webster —, verifica-se que a palavra se escreve sem hífen: role model. A palavra tem a flexão de plural mais generalizada em inglês, com -s, no segundo elemento do composto: role models.

2. Quanto aos exemplos portugueses, segue-se o critério definido pelo Dicionário Houaiss para uso de modelo em compostos relativos a estabelecimentos:

«seguindo um subst[antivo], ao qual se liga por hífen, é um determinante específico invariável e significa "estabelecimento que, pela excelência de seu trabalho ou serviços, serve de padrão a outros" (escola-modelo, fazenda-modelo).»

Este critério é generalizável a substantivos designativos de pessoas, referindo-se modelo a «pessoa que, pela excelência, das suas qualidades morais ou profissionais, serve de padrão a outros: profissionais-modelo, candidatos-modelo. Nestes casos, o segundo elemento nominal do composto mantém-se no singular porque especifica o conteúdo semântico do primeiro elemento, definindo um tipo de profissional, candidato ou empresa.

Para que se considerassem adequadas as formas em que o segundo passa ...