Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Surgiu-me uma dúvida específica relacionada com a mesóclise e a anteposição do pronome reflexo após uma conjunção ou locução conjuncional.

Em «... pelo que me agrada mais esta solução», a opção é evidente, mas numa situação de mesóclise, qual a opção mais correta?

«... pelo que inclinar-me-ei perante a vossa decisão.»

«... pelo que me inclinarei perante a vossa decisão.»

Obrigada.

Resposta:

Numa oração subordinada, um pronome clítico passa sempre a anteceder o verbo, mesmo que este esteja no futuro simples do indicativo ou no condicional (futuro do pretérito no Brasil). A forma correcta é, portanto:

«... pelo que me inclinarei perante a vossa decisão» (com verbo no futuro simples ou do presente).

Pergunta:

O imperador romano Publius Helvius Pertinax deveria ter o seu nome aportuguesado como Públio Hélvio Pertinax, formas adotadas pela Wikipédia, ou deveria ser Públio Hélvio Pertinaz, como cuido, aportuguesando-se bem o último nome? Aliás, é de se perguntar se já houve no passado, entre nós, o aportuguesamento Pertinaz.

Muito obrigado.

Resposta:

O nome do imperador em apreço deve ser aportuguesado como Pertinaz, antropónimo masculino registado por Rebelo Gonçalves no seu Vocabulário da Língua Portuguesa (1966) e no Índice de Nome Próprios Latinos e Gregos (Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1995), de Maria Helena Prieto e Abel do Nascimento Pena.1 Assinale-se que, no âmbito das línguas românicas, o italiano também traduz o nome como Pertinace (ver artigo da Wikipédia em italiano).

Convém, no entanto, alertar que em obras de carácter historiográfico publicadas em Portugal, ocorre a forma latina, Pertinax. Do mesmo modo, no Dicionário Prático Ilustrado Lello (1959) e no Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa (2003), de José Pedro Machado, emprega-se a forma latina sem alteração.

1 Agradeço ao Doutor Rodrigo Furtado a indicação destas duas referências.

Pergunta:

Minha dúvida refere-se ao infinitivo gerundivo (preposição a + infinitivo). Não encontro nenhuma regra específica a ele e por isto recorro a vocês. Em uma sentença, se optar por usar gerúndio, eu posso (pelo menos, eu acho que posso) aplicar tanto ênclise quanto próclise para terceira pessoa feminina de verbos transitivos indiretos («fazendo-a» ou «a fazendo»). O que acontece se, em vez de «a fazendo», eu resolver usar o infinitivo gerundivo ao invés do gerúndio, mantendo a próclise: «a a fazer» «à fazer»? Há alguma informação na gramática acerca disto? Imagino que a construção destrua o sentido, mas fiquei curioso.

Obrigado.

Resposta:

O pronome pessoal clítico a (3.ª pessoa singular, género feminino) fica em ênclise, justamente para evitar a contracção (crase) com a preposição a: «a fazê-la».

Pergunta:

Considerando a frase «Voando vai para a praia, Leonor na estrada preta.»

1. Trata-se de uma frase simples em que «vai voando» é o «complexo verbal (antiga perifrástica) e «para a praia» o complemento oblíquo?

2. Como analisar «voando» sintacticamente, neste contexto?

Obrigada.

Resposta:

A frase apresentada está na ordem indirecta. Na ordem directa, podem obter-se, pelo menos duas versões:

1. «Leonor vai voando para a praia na estrada preta.»

2. «Leonor vai para a praia voando na estrada preta.»

Em 1, trata-se de uma frase simples, em que «vai voando» é um complexo verbal (cf. Dicionário Terminológico) formado pelo auxiliar ir e um verbo principal, voar, no gerúndio (voando).

Em 2, a frase é complexa: «voando na estrada preta» é uma oração subordinada adverbial de gerúndio, equivalente a «por meio de voo na estrada preta», com a função de predicativo do sujeito ou, usando outra terminologia, de anexo predicativo.

«Para a praia» é complemento oblíquo quer em 1 quer em 2.

Pergunta:

Relativamente à utilização de qualquer, há comentários no sítio que dizem ter gramáticos que condenam o seu uso em contextos com valor negativo, recomendando a substituição por nenhum. Gostaria de uma opinião sobre este caso, que é corriqueiro nos noticiários: «O senador negou qualquer participação no desvio de verbas.» Nesse contexto, é clara a intenção de enfatizar que não houve nenhuma participação, entretanto a utilização de nenhuma nessa frase é inviável. Poderíamos dizer assim: «o senador afirmou que não teve nenhuma/qualquer participação no desvio de verbas», em que se poderia optar pela forma mais purista. Assim, é correto utilizar «negou qualquer»?

Resposta:

Considero que o caso apresentado pelo consulente evidencia a dificuldade em rejeitar actualmente o uso de qualquer com palavras de valor negativo: a gramaticalidade de «negar qualquer participação», em contraste com a impossibilidade de *«negar nenhuma participação», aconselha a rever juízos normativos do passado e a encarar como aceitável a ocorrência de qualquer em associação com marcadores de negação, como o advérbio não

Diz Maria Helena de Moura Neves, em Guia de Uso do Português (São Paulo, Editora Unesp, 2003):

Em manuais normativos condena-se o uso de qualquer com valor negativo, recomendando-se o uso de nenhum. De resto, a doida não deu NENHUM sinal de guerra. [...]

Entretanto, a forma é usual, nesse contexto, nos diferentes registros. O Ministério da Fazenda também não deu qualquer retorno. [...] A sorte da villa é que essa estrada não tem qualquer importância estratégica.