Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Agradeço o vosso esclarecimento, mas se a letra k voltou ao alfabeto português e a sua leitura (mais aportuguesada) é "Kinchassa" (V. art. n.º 141 – Pelourinho para os ss), talvez fosse mais aceitável do que um ilegível sh ou um z em asa de Kinshasa do vocabulário citado.

Resposta:

Compreendo o seu argumento, mas o Acordo Ortográfico integra o k no alfabeto português, com as restrições que sobre essa letra recaíam no passado. Com efeito, no tocante às letras k, w e y vale a pena comparar o Acordo Ortográfico de 1945 (AO 1945) e o Acordo Ortográfico de 1990 (AO 1990):

AO 1945, Base II:

«1.º O k, o w e o y mantêm-se nos vocábulos derivados eruditamente de nomes próprios estrangeiros que se escrevam com essas letras: frankliniano, kantismo; darwinismo, wagneriano; byroniano, taylorista. Não é lícito, portanto, em tais derivados, que o k, o w e o y sejam substituídos por letras vernáculas equivalentes: cantismo, daruinismo, baironiano, etc.

2.º Em congruência com a base anterior, mantêm-se nos vocábulos derivados eruditamente de nomes próprios estrangeiros, não tolerando substituição, quaisquer combinações gráficas não peculiares à nossa escrit...

Pergunta:

É correcto dizer «aparentar-se a»? Em minha opinião, a preposição correcta seria com, mas tenho encontrado a primeira forma.

Obrigada.

Resposta:

Usado pronominalmente, o verbo aparentar1 deve usar-se com um complemento oblíquo introduzido pela preposição com, como atesta o Dicionário Houaiss:

«transitivo direto, bitransitivo e pronominal. tornar(-se) ou fazer(-se) parente; estabelecer parentesco Ex.: "Deus aparentou os homens", "o casamento da filha aparentou-os com aquela nobre família", "aparentou-se com família tradicional".»

Como vemos nos dois últimos exemplos («aparentou-os com...», «aparentou-se com...»), ocorre a preposição com.

 

1 Existe um verbo homónimo, aparentar, com significação e etimologia diferentes: «que aparece, que é ou se torna visível; evidente», «quase certo; provável, verossímil», «quase igual no aspecto, na forma, na aparência; parecido, semelhante», «cuja aparência não corresponde à realidade; suposto, fictício»; é palavra surgida por via erudita, por adaptação do latim clássico apparens, apparentis, particípio presente de aparĕre, «aparecer» (Dicionário Houaiss). Este verbo não aceita a regência com a preposição com.

Pergunta:

É correcto dizer-se «Vinte homens apoiados por quatro viaturas»?

As viaturas apoiam os homens ou, os homens é que se apoiam nas viaturas?

Esta conversa ouve-se com muita frequência nas televisões sobretudo em relação aos bombeiros que combatem os incêndios na época de Verão.

Muito obrigado.

Resposta:

As duas construções estão correctas.

O verbo apoiar pode usar-se com sujeito realizado por substantivo com o traço não humano e  complemento directo preenchido por substantivo com o traço humano, como mostram a voz activa e a voz passiva do verbo em apreço:

1 – «Quatro viaturas apoiaram vinte homens.»

2 – «Vinte homens foram apoiados por quatro viaturas.»

É também possível uma construção com o particípio passado de apoiar:

3 – «Vinte homens apoiados por quatro viaturas.»

A expressão em 3 seria adequada a um título jornalístico, no qual se omitiria o verbo auxiliar da voz passiva (ser).

Este emprego corresponde a uma das acepções de apoiar registadas no Dicionário Houiass: «termo de marinha, termo militar; ajudar ou proteger, por meio de atividade ou operação complementar, ação ou operação realizada por indivíduo, unidade, grupo ou força militar». Embora «viaturas» não designe «atividade ou operação complementar», trata-de de um meio ou instrumento de ajuda ou protecção a um grupo de homens que desenvolvem determinada acção ou operação.

Pergunta:

Tenho interesse em saber se em latim havia apenas um verbo para exprimir «ser» e «existir».

A dúvida é geral, mas pontualmente surgiu-me a partir da conhecida assertiva cartesiana «Cogito, ergo sum», tradicionalmente traduzida como «Penso, logo existo». Não seria, literalmente, «penso, logo sou»?

Agradeço de antemão.

Resposta:

A resposta é sim. O verbo sum é traduzido em português pelos seguintes verbos:

ser

estar

existir

haver (no sentido de «existir»)

ter (na construção de dativo mihi est liber = «tenho um livro»)

O próprio verbo ser em português pode ser sin{#ó|ô}nimo de existir, quando é usado intransitivamente com o significado de «ter existência real; existir, viver» (Dicionário Houaiss).

Pergunta:

Gostava de saber a etimologia do apelido Neves.

Resposta:

Cito José Pedro Machado (Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa):

«Apelido [p]rovavelmente de origem religiosa, uma das invocações de Nossa Senhora, Maria das Neves, composição antroponímica muito frequente entre nós, a princípio usado com meninas nascidas a 5-VIII, dia da comemoração daquela santa. [...]»

O apelido pode também ter origem no topónimo Neves, este também relacionado com o culto de Nossa Senhora das Neves, segundo a mesma fonte:

«Do s[ubstantivo] f[eminino] pl[ural] neves, certamente em referência, nuns casos, à devoção local de Nossa Senhora das Neves, noutros à existência de neve na região. Em St. Maria [Cantigas de Santa Maria de Afonso X de Castela e Leão] celebra-se o milagre da neve em Agosto, para marcar o terreno de Roma onde se ergueria a Basílica de Santa Maria Maior [...].»