Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual a origem e a etimologia da palavra Zagallo?

Obrigado.

Resposta:

Zagallo é um apelido/sobrenome, que aparece escrito Zagalo quer no Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, quer em As Origens dos Apelidos das Famílias Portuguesas, de Manuel de Sousa (Mem Martins, Sporpress, edição especial para Correio da Manhã). Machado (op. cit.) considera que o apelido/sobrenome tem origem no nome comum zagalo, variante de zagal, «pastor, pegureiro», usado como alcunha/apelido.

Sousa (op. cit.) faculta-nos elementos sobre este nome em Portugal:

«Apelido já usado em Portugal por Martim Anes Zagalo, contemporâneo de D. Afonso III. Seria seu descendente Martim Pires Zagalo, que viveu em princípios do século XV e foi o primeiro administrador de um vínculo instituído em Évora por um seu primo, Gonçalo Miguéns, em 1410. De Martim Pires foi filho Gomes Martins Zagalo, vassalo e cavaleiro de D. João I, que por mercê deste soberano foi senhor das terras de Malpique, dele descendendo diversos ramos de Zagalos que no nosso país prosperaram e dos quais alguns passaram às ilhas, Índia e Brasil. As armas dos Zagalos são: de ouro, com duas estrelas de vermelho de seis raios, em faixa, cada uma acompanhada em chefe de um crescente e em ponta de uma arruela, tudo do mesmo. Timbre: um leopardo de ouro, carregado com uma estrela do escudo na testa.»

Pergunta:

Tenho procurado solução para uma dúvida e nada encontro que me dê resposta científica.

Diz-se na oralidade «tenho falado em ti» mas parece-me que o correcto será «tenho falado de ti». Afinal, «falar em» não deveria apenas ser usado para «falamos em inglês», ou «falei em Benfica» (porque estava em Benfica a falar)?

Em não se refere sempre a um local ou um modo?

«Falar de Benfica», sim, será falar sobre Benfica, certo?

Isto leva-me, então, à questão final. Na frase «Ele quer ir almoçar convosco, está sempre a falar...», deve usar-se «falar disso» ou «falar nisso»?

O nisso não deve aplicar-se apenas a um local ou modo?

Obrigado pela atenção.

Resposta:

Em português europeu, é correcto o uso da preposição em na construção da regência do verbo falar. Existe mesmo uma diferença semântica entre «falar em» e «falar de»:

a) «falar em» = «falar sobre»;

b) «falar de» = «falar de», «falar mal sobre».

Embora possa significar o mesmo que «falar em», «falar de» pode envolver intenção malévola para com outrem, se o complemento oblíquo contiver um substantivo com o traço [+humano]: é por isso que «falar de ti» se interpreta muitas vezes como sinónimo de «falar mal de ti».

Em relação à última frase apresentada, pode dizer das duas maneiras, porque se neutraliza a diferença entre «falar em» e «falar de». Mas assinalo que, mesmo, em complementos oblíquos, com substantivos caracterizados como não humanos (traço [-humano]), é possível acontecer que «falar de» tenha o referido significado de «comentar desfavoralmente»: «eles falaram da arbitragem» (neste caso, há uma relação com um agente, o árbitro).

Anote-se, por último, que outros verbos seleccionam a preposição em, sem que o significado seja inequivocamente o de lugar ou modo. Por exemplo o verbo pensar subcategoriza um complemento oblíquo introduzido pela preposição em: «não penses nisso», ou seja, «não penses sobre isso» (apesar de poderem ter sentido locativo, em e sobre assumem aqui um valor relacional, próximo de «a respeito de»).

Pergunta:

No contexto do provérbio popular «Ao menino e ao borracho põe Deus a mão por baixo», borracho tem o significado de cria de «pombo», ou de «bêbado»? O sentido do provérbio não muda, no entanto gostava de saber.

Obrigado.

Resposta:

Normalmente, nesse provérbio, interpreta-se borracho como designação de «pombo novo, implume ou sem a plumagem completa, que ainda não voa» (Dicionário Houaiss) , como o demonstra o seguinte contexto, registado por Gabriela Funk e Mattias Funk no Dicionário Prático de Provérbios Portugueses (Lisboa, Edições Cosmos, 2008):

«[...] Sempre ouvi dizer que "ao menino e ao borracho põe Deus a mão por baixo". Mas (permita-me/permitam-me maior abrangência), senhores Professores Doutores regionais, César já não é menino e muito menos gorducha avezinha a preparar-se para o voo [...].»

A expressão «gorducha avezinha a preparar-se para o voo» confirma a definição de borracho como «pombo novo» e não como «bêbado», ébrio».

Pergunta:

Pelo o que tenho podido observar, o fonema /j/ da nossa língua portuguesa, escrito com a letra j antes de qualquer vogal e com a letra g antes de e e i, parece ser bem raro nas línguas do mundo. Além do nosso idioma, apenas a língua francesa aparenta possuí-lo, até onde sei.

Da letra j, o que se pode dizer é que ela está presente na ortografia de várias línguas, mas não representa o fonema em apreço. Em inglês, esta letra tem o som de /dj/; em castelhano, o de /rr/; em latim, ao que parece o tardio, o de /i/.

Feitas estas considerações, gostaria que me esclarecessem se o mencionado fonema é mesmo raro nas línguas do mundo, e se são realmente apenas o português e o francês que o têm inserido nos seus sistemas fonéticos. Caso ele ocorra em outros idiomas, poderiam elencar todos em que este fonema aparece?

Muito obrigado.

Resposta:

A unidade fónica representada pela letra j ou por g, antes de e ou i, é representada pelo símbolo [Ʒ] e designada como consoante fricativa palatal sonora ou vozeada1 (cf. Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1984, pág. 45, e M.ª Helena Mira Mateus et al., Fonética e Fonologia do Português, Lisboa, Universidade Aberta, 2005, pág. 83). Trata-se de uma consoante que não se pode considerar rara nas línguas do mundo, visto ocorrer também em línguas europeias, indo-europeias, como o catalão e o inglês, ou não indo-europeias, como o húngaro:

catalão: llegir

inglês: vision

húngaro: rózsa

O Handbook of the International Phonetic Association (Cambridge, Cambridge University Press, 1999) inclui o símbolo [Ʒ] na descrição de outras línguas indo-europeias, como as da subfamília eslava (búlgaro, croata, checo, esloveno) e o persa, do ramo indo-iraniano. Esta unidade aparece ainda em línguas semíticas como o hebraico moderno e vários dialectos do árabe, estando ainda presente em idiomas do grupo túrquico (antigamente chamado altaico; cf. Lyle Campbell e Mauricio Mixco, A Glossary of Historical Linguistics, Edimburgo, Edinburgh University Press, 2007), mais concretamente, no turco. Mas, como compreenderá o consulente, não me é possível elencar todos os idiomas em que esta unidade ocorre, até porque de língua para língua há sempre pequenas diferenças articulatórias donde decorrem descrições distintas.2

1 Ou fricativa lâmino-pré-palatal vozeada, de ac...

Pergunta:

A língua portuguesa é rica em sutilezas e opiniões diversas sobre o mesmo tema. Consultei hoje, agora mesmo, uma resposta dada pelo sempre respeitável professor Carlos Rocha sobre o uso do indicativo ou subjuntivo na seguinte frase: «De resto, não tenho dúvidas de que a FMU é/seja uma excelente faculdade.» Disse o sábio professor que o enunciador assume o valor de verdade se usar o indicativo, ao passo que, se usar o subjuntivo, deixa uma ponta de dúvida quanto à veracidade da afirmação. Há algum tempo, consultei outra resposta dada pelo também respeitável professor José Neves Henriques (21/03/2001) sobre a seguinte dúvida relacionada ao mesmo tema: «Não há dúvida de que ele está (ou esteja).» Segundo sua opinião, a negação da dúvida torna o fato real, certo, absoluto, por isso empregamos o modo indicativo. Com base nessa opinião, jurava, usando uma expressão do consulente Mauro Pinho, ter exterminado tal dúvida. Segundo minha humilde opinião, se uma pessoa diz que «não há dúvida» ou «não tenho dúvida», deve ter elementos suficientes para emitir tal juízo, semelhante a «tenho a certeza». Se houver alguma dúvida, acho melhor expressar «há dúvida» ou «tenho dúvida». Senão, fica difícil entender a intenção do falante, pois, ao mesmo tempo que diz «não tenho dúvidas», restando clara a certeza absoluta do fato ou afirmação (com base em experiência pessoal, opiniões de terceiros que lá estudaram, consulta ao MEC, mercado de trabalho etc.), logo em seguida usa o subjuntivo (seja), deixando dúvida quanto à negação da dúvida.

Grato pela forma sempre cordial com que respondem às nossas dúvidas.

Resposta:

Agradeço o comentário enviado, que me permitiu fazer uma pequena correcção na minha resposta. De qualquer modo, mantenho o que aí digo em substância: depois de «não há dúvidas» ou «não há dúvida» ou até «não duvido» e restantes formas do verbo duvidar na negativa, o verbo da subordinada completiva pode encontrar-se nos dois modos, no indicativo ou no con/subjuntivo.

Encontramos esta mesma alternância depois da negação do verbo duvidar num exemplo retirado de Maria Helena de Moura Neves, Gramática de Usos do Português (São Paulo, Editora UNESP, 2000, pág. 359) e que a seguir se transcreve:

1) «Não duvido de que o fosse [fosse justo], mas era também rico.»

Esta frase pode ser convertida noutra, com completiva de indicativo:

2) «Não duvido de que o era, mas era também rico.»

A diferença entre 1) e 2) reside no facto de o con/subjuntivo indicar que «não duvidar» é acreditar numa afirmação produzida por outrem, podendo a maior parte de 1) ser parafraseada assim:

3) «Não duvido dessa afirmação, a de que ele era justo.»

Trata-se de uma alternância que também ocorre com verbos que exprimem crença, conforme descrevem M.ª Helena Mira Mateus e outras, na Gramática da Língua Portuguesa (Lisboa, Editorial Caminho, 2003, pág. 266):

«Em frases completivas, a negação na oração principal pode afectar a selecção de modo. Os exemplos seguintes mostram alguns desses casos, com verbos que admitem ambos os modos.

(97) O Rui não acredita que a Ana tenha partido/partiu/parta/vai partir.

(98) O Rui não acreditou que a Ana partiu/partisse/tivesse...