Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Um apelido português é Missel, ou é Misser? Parece que ambos se enquadram bem na ortografia portuguesa, não é?

Por outro lado, este parece ser um sobrenome português que pouco ocorre. Sabeis dizer-me se o mesmo encontra-se ainda em uso? Aqui no Brasil, onde, desde o período colonial, os apelidos portugueses são bastante usados, seja pela imigração de portugueses, seja pela imposição dos mesmos aos índios, seja pela intensa miscigenação de portugueses, negros e índios, da qual resultou o povo brasileiro, este sobrenome parece ser muito raro ou mesmo não existir.

Muito obrigado.

Resposta:

Não encontro atestada a forma Missel em Portugal. Já as formas Misser e Micer aparecem como títulos e não como apelidos, pelo menos, em Portugal. Segundo José Pedro Machado (Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa), trata-se de «fórmula de tratamento usada com italianos», com origem no italiano missere, «ao lado de messere (< mio sire), fórmula de tratamento», parecendo «quase sempre escrito mícer».

Como na Internet não encontro sequer esse apelido em páginas portuguesas, parece-me de sugerir que a origem não é portuguesa, mas terá outra proveniência, que me é impossível identificar por enquanto.

Pergunta:

Vendo a vossa resposta n.º 28 126, pensei em colocar-vos uma questão, que me intriga há anos, e que não sei se já foi colocada aqui.

Existe algum motivo pelo qual a palavra Deus não vem precedida de artigo definido, enquanto «o Diabo» pode vir precedida do mesmo? Engraçado, é que isso acontece também em outras línguas: inglês — God mas «the Devil»; francês — Dieu mas «le Diable».

Obrigado.

Resposta:

Realmente, a palavra Deus, como nome de «ente infinito, eterno, sobrenatural e existente por si só» e «causa necessária e fim último de tudo que existe» (Dicionário Houaiss), nunca vem precedida de artigo definido. Como é sabido, os nomes próprios de pessoas (antropónimos), mesmo o de figuras históricas, podem, em português, ser acompanhados de artigo definido em registos informais («vi o João»; «não li esse livro do Platão»). Contudo, no caso de Deus, impôs-se sistematicamente a formalidade que envolve o respeito por essa entidade, de tal maneira, que mesmo os não crentes usam esse nome próprio sem artigo definido. Será este o motivo desta particularidade, muito embora não a encontre descrita ou comentada em gramáticas, prontuários ou dicionários.

Pergunta:

Na frase: «Ele vive como lhe apetece», retirada da Gramática da Areal, «como lhe apetece» é referido como subordinada substantiva relativa com a função modificador do grupo verbal, «vive». A minha questão reside na análise da dita oração, ou seja, identificação da função sintáctica do advérbio relativo como, das posições de sujeito, de complemento directo, etc. Ou não é possível proceder a uma análise dessa oração?

Obrigada pela vossa atenção.

Resposta:

Só como advérbio relativo conhecemos a palavra onde, mencionada por Celso Cunha e Lindley Cintra, na Nova Gramática do Português Contemporâneo (p. 540), e também referida no Dicionário Terminológico (cf. entrada Advérbio relativo em B3.1).

Orações do tipo daquela a que se refere têm sido chamadas orações conformativas na tradição gramatical brasileira (cf. Cunha e Cintra, p. 540). Em Portugal, a tradição não lhes tem dado a devida atenção, mas, na Gramática da Língua Portuguesa de M.ª Helena Mira Mateus et al. (p. 729-766), aparecem ao lado das orações comparativas num capítulo dedicado às construções de graduação e comparação (p. 729-766).

Seja como for, uma oração conformativa é uma oração adverbial e, como tal, é um modificador do grupo verbal da oração subordinante (neste caso, «Ele vive»).

Quanto à análise da oração em si, temos:

sujeito: «ele» (subentendido)
predicado: «apetece-lhe»

Pergunta:

Seria possível dizerem-me quais os tipos de transformações fonéticas que existem e qual o seu significado?

Obrigado.

Resposta:

O Dicionário Terminológico (DT) considera a existência de dois tipos de mudança linguística na alteração do sistema fonológico e do repertório de unidades fónicas de uma língua:

regular

«Mudança que atinge os sons de uma língua, i. e., mudança fonética ou fonológica, e que parece obedecer a um princípio de regularidade: o mesmo som, numa dada língua, por vezes em contexto fonético determinado, evolui no mesmo sentido em todas as palavras dessa língua durante um certo período.»

irregular

«Mudança que não obedece a um princípio de regularidade. Verifica-se ao nível fonético, sobretudo com dissimilações e metáteses, e ao nível lexical, com as etimologias populares. A etimologia popular é uma forma de mudança analógica.»

Também no DT se inventariam processos fonológicos relevantes para o estudo do português e passíveis de ocorrer num dado estádio de evolução linguística (sincronicamente, na variação de uma dada língua), podendo generalizar-se a uma perspectiva histórica (diacrónica), como adiante se exemplifica (PE = português europeu; PB = português brasileiro):

inserção de segmentos

 

posição inicial (prótese): mandar > "amandar" (dialectos e sociolectos do PE)

 

posição medial (epêntese): FEBRUARIU- > fevereiro<...

Pergunta:

Vejo formas diferentes para identificar aqueles que obtiveram graus académicos antes e/ou depois do processo de Bolonha.

Exemplos: «Eu tenho grau de mestre pré-Bolonha» ou «eu obtive o grau de Mestre ante-Bolonha»? Qual é a forma correcta, se é que há alguma incorrecta?

Obrigado.

Resposta:

São criações legítimas, resultantes da prefixação do nome próprio Bolonha. Assim como existe pré-contrato, que tem como sinónimo antecontrato, também, é possível formar pré-Bolonha e Antebolonha (ou ante-Bolonha, como já explicarei).

Assinale-se, contudo, que com prefixos como ante, que podem aglutinar-se a um elemento seguinte, não há regras expressas, pelo menos, nos acordos ortográficos que se têm sucedido. Existem duas opções:

a)  a palavra prefixada é um substantivo (por exemplo, «a Antebolonha», no sentido de «a povoação anterior a Bolonha»), pelo que o prefixo passa a ter maiúscula inicial e nome próprio prefixado passa a ter minúscula inicial.1

b) se a palavra prefixada é um adjectivo, situação mais frequente, quando se quer referir, por exemplo, «um curso anterior a(o acordo de) Bolonha», recomenda-se o uso sistemático de hífen (ver Textos Relacionados), pelo que se escrevera ante-Bolonha.

Trata-se, de qualquer modo, de uma pequena área em que é necessária a intervenção de entidades com autoridade reconhecida em matéria de fixação da norma para confirmar as opções descritas ou definir um critério mais uniforme.

1 É assim que encontramos escritos nomes como Anticristo (< anti- + Cristo), Pseudocristo (<pseudo- + Cristo) ou