Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

À porta de uma mercearia em Alverca lê-se num cartaz: «Há vinho da Calhandriz e pão da Arruda.»

Em conversa com alguns fregueses, constatei que é costume nas redondezas usar-se o artigo definido a (além das contrações preposicionais da e na) para fazer referência a estas duas povoações, sobretudo entre os nativos e os mais idosos.

Em todo o caso, quaisquer alusões a CalhandrizArruda (dos Vinhos) são-nos apresentadas, regularmente, e dependendo do contexto, de forma neutral.

Vejam-se alguns títulos do jornal O Mirante:«Um morto e 34 infetados em lar de Arruda dos Vinhos' (e não «'da' Arruda dos Vinhos»); ou «A Guarda Nacional Republicana emitiu um parecer de segurança negativo à instalação de duas novas caixas multibanco em Calhandriz» (e não «'na' Calhandriz»).

No entanto, e noutra edição, o mesmo jornal destaca: «Ser compositor e músico é ter uma profissão demasiado dura para não se gostar dela. Quem o diz é Telmo Lopes, [...] compositor natural da Calhandriz [....].»

Perante isto, deverão estes fenómenos linguísticos ser encarados como norma ou apenas como meros regionalismos? E qual é, na verdade, o género dos topónimos Calhandriz e Arruda dos Vinhos?

Agradeço à Comunidade Ciberdúvidas o apoio prestado, assim como a eficácia e a assertividade das vossas respostas.

Resposta:

O uso do artigo definido com topónimos sujeita-se muitas vezes ao critério da atribuição ao léxico comum (ver Textos Relacionados). Por outras palavras, se o topónimo tiver origem num substantivo comum, é previsível que a sua ocorrência tenha associado o artigo definido:

(1) Porto – «o Porto» (de porto, nome comum)

(2) Costa Nova – «a Costa Nova» (de costa, nome comum)

Sobre (1) e (2), dir-se-á ainda que são topónimos transparentes, isto é, topónimos interpretáveis por palavras do léxico comum, de uso mais ou menos corrente1. Como sempre, deve recordar-se também que há exceções quanto ao critério enunciado, pois há topónimos com origem em nomes comuns sem artigo definido associado, como acontece com os compostos de vila e castelo: «vivo em Vila Real de Santo António», «moro em Castelo de Paiva».

Examinando os casos em apreço, é de considerar que Arruda tem artigo definido, porque resulta da conversão do substantivo comum arruda (aparentemente, um fitónimo, isto é, o nome de uma planta) em nome próprio (cf. José Pedro Machado, Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa). Daí que, sem surpresa, o uso corrente inclua o artigo definido: «comprei pão da Arruda».

Quanto a Calhandriz, como é pouco ou nada clara a sua relação com o vocabulário comum, diz-se que é um topónimo opaco – cujo significado não é interpretável pelo de um nome comum –, e em tal caso o que se observa é o nome empregar-se sem artigo definido. Sendo assim, «vinho da Calhandriz» seria uma anomalia ou incorreção, mas não é isto verdade. Com efeito, há que ter em ...

Pergunta:

Gostaria de saber o que significa pregão na canção "Lisboa,menina e moça"? Isto porque pregão pode-se referir às figuras típicas que percorriam as ruas dos bairros lisboetas, para reparar tachos e panelas, mas também pode fazer referência aos pregões que as varinas proferiam.

Agradeço desde já a vossa disponibilidade em ajudar.

Resposta:

A palavra pregão denomina qualquer forma de anúncio vocal associado à venda, por vendedores ambulantes,  de géneros ou produtos de qualquer tipo – de tachos e panelas à sardinha e ao carapau.

Começando por recordar os versos do famoso fado cantado por Carlos do Carmo (1939-2021):

Lisboa menina e moça, menina
Da luz que meus olhos vêem tão pura
Teus seios são as colinas, varina
Pregão que me traz à porta, ternura

Nestes versos, ocorre o nome pregão sem referência concreta, podendo,portanto, aludir a qualquer tipo de pregão.

Os pregões podiam ser (e ainda são,os que restam) de vários tipos em função do que se vendia no comércio ambulante. Exemplos:

(1) Quem quer figos, quem quer almoçar! (hoje em desuso)

(2) Olha a fava-rica! (hoje desaparecido, porque já não é hábito preparar a fava-rica1).

(3) Quentes e boas! (para a venda de castanha assada)

(4) Olhà bolinha! (hoje corrente entre vendedores de bolas de Berlim, nas praias da região de Lisboa, durante o verão)

Encontram-se vários outros exemplos em Pregões de Lisboa Antiga.

A palavra pregão terá origem no latim praecoōnis «pregoeiro público, arauto, o que proclama, anuncia ou diz em público» (Dicionário Houaiss; ver também Infopédia). Poderia pensar-se que é um derivado de pregar, cuja primeira sílaba tem e aberto átono; se assim fosse, o vocábulo em causa soaria "prègão", também...

Pergunta:

Já nos explicaram a etimologia da palavra noite, mas conseguem explicar o fenómeno recorrente de, em línguas diferentes, a palavra noite ser mais ou menos n + oito?

Mesmo que todas venham do latim, há alguma razão para esta relação entre noite e oito ou só coincidência?

Resposta:

É uma coincidência que tem que ver com a convergência de certas sequências fónicas do proto-indo-europeu para o latim e deste para o galego-português. A etimologia fundada nos estudos de fonética e semântica históricas assim parecem apontar.

É sem surpresa que se verifica a identificação parcial entre palavras semanticamente equivalentes nas outras línguas românicas: noche/ocho (espanhol ou castelhano); nuit/huit (francês); notte/otto (italiano). Mas não se trata de uma coincidência claramente sistemática no conjunto das línguas românicas, porque em catalão nit,«noite», e vuit, «oito», ou, em romeno, noapte e opt evidenciam que a sequência em comum se estreita e conta apenas dois segmentos: -it- em catalão e -pt- em romeno.

Se se remontar à origem latina de todos os anteriores exemplos – são cognatos, isto é, palavras de línguas diferentes que evoluíram dos mesmos étimos –, tampouco a semelhança da terminação de nocte- (acusativo de nox, noctis, «noite») com octo torna conclusiva uma relação mais profunda do que a coincidência fonética. Na verdade, as raízes do proto-indo-europeu donde decorrem as palavras latinas mostram que apenas a consoante oclusi...

Pergunta:

Há uns tempos, durante uma curta viagem pelo concelho de Mirandela, deparei-me com a existência de um topónimo muito peculiar, que assumia, na sinalização local, duas grafias: Suçães ou Sucçães.

Algumas fontes relacionam imediatamente a origem de Su(c)çães com a presença de «uma propriedade rústica anterior à Nacionalidade», ou seja, uma villa romana, cujo nome terá evoluído, posteriormente, para Suxães (segundo as Inquirições de D. Afonso III).

Gostaria de saber se, conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, a grafia deste topónimo deve ser originalmente mantida (enquanto Sucçães) ou alterada para Suçães...

Muito agradeço os vossos esclarecimentos.

Resposta:

O topónimo transmontano em questão escreve-se Sucçães conforme a ortografia de 19451, mas Suçães no quadro da norma em vigor, a do Acordo Ortográfico de 19902.

Trata-se de um topónimo muito curioso, porque a grafia com , que a ortografia de1945 fixava, não tem explicação clara, podendo até ser muito discutível.

É verdade que o topónimo aparece sob a forma Suxaes nos Portugaliae Monunenta Historica. Leges. vol VIII (1961), na transcrição das Inquirições de Afonso III. No entanto, não é líquido que tal x fosse a representação gráfica de uma pronúncia medieval correspondente a [ks] (o valor de x em táxi, por exemplo).

Com efeito, pensando que do latim traxui resultou trouxe, que no português padrão soa "trosse", com [s] – apesar de dialetalmente ainda se dizer "trouxe", com o x de baixo, cujo símbolo fonético é [ʃ] –, seria de esperar que, num topónimo com origens medievais e transmitido por via popular, a sequência consonântica [ks] se simplificasse também como segmento simples, a soar [s] ou [ʃ]. Além disso, a consulta das Inquirições de D.Dinis de 1288 parece exibir a forma com apenas um ç, tal como o atual Suçães3. Quase quinhentos anos mais tarde, as 

Pergunta:

Como de fato se escrevem as palavras "Fulani", "Fiji", "Mali", "Bali", "Omani", "Origami", "Tsunami", "Maori", "Hindi", "Bengali", "Somali", já que parece que todas são paroxítonas, embora não tenham acento?

Obrigado.

P.S.– Parabéns a todos que fazem este excelente trabalho no Ciberdúvidas, que é um dos grandes baluartes atuais de nossa língua!

Resposta:

A maior parte dos casos mencionados na pergunta estão fixados pela ortografia, recomendando-se que seja pronunciados como palavras oxítonas: Fiji, Mali, Bali, omani (ou omanense), origami, tsunami, maori, hindi, bengali, somali.

Dentro deste conjunto existem as seguintes variantes paroxítonas. também corretas: tsunâmi, híndi.

Quanto a fulani (adjetivo e substantivo) e Fulani (substantivo usado como etnónimo) – formas alternativas a fula/Fula1 –, são estas formas ainda pouco usadas e ainda em fase de estabilização quanto à sua generalização nos registos lexicográficos em fontes de referência. Em todo o caso, tal como estão atrás grafadas, também se pronunciam como oxítona – cf. Infopédia.

Em nome da equipa do Ciberdúvidas, aqui ficam expressos os agradecimentos pelas estimulantes palavras de apreço no final.

 

1 Fula é a denominação de um grupo étnico que se encontra em vários países da África Ocidental, entre eles, a Guiné-Bissau. A língua ou sistema de dialetos fulas têm sido integrados na família nigero-congolesa.

Cf.