Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

No Brasil, é generalizado o uso de azeite para designar óleos, como na expressão «azeite de dendê».

Como consequência, a expressão «azeite de oliva», para se designar o óleo do fruto da oliveira, é típica no país (apesar de que, em Portugal, é considerada pleonástica).

Por isso, pergunto-lhes, há alguma relação entre os termos oliva e óleo, que seriam, nesse caso, os equivalentes de origem latina dos termos de etimologia árabes azeitona e azeite, respectivamente?

Muito obrigado pelo seu excelente trabalho! Desejo-lhes um ótimo ano!

Resposta:

É adequada a descrição que é feita na pergunta sobre a palavra azeite (do árabe zayt, «óleo, essência, azeite») e do contraste existente entre os respetivos usos no Brasil e em Portugal1. No Brasil, é, portanto, frequente a expressão «azeite de oliva», enquanto, em Portugal, se diz apenas «azeite», uma vez que empregamos óleo, em todos os outros casos.

Também se confirma aqui que entre oliva e óleo há uma relação etimológica muito estreita, porque são palavras que partilham o mesmo radical latino, que tinha duas variantes ole- e oli-. Com efeito, óleo vem do nome latino oleum, que significava «azeite», e oliva é adaptação de oliva, que em latim designava a árvore (oliveira) e o fruto chamado correntemente azeitona, ou oliva, que isoladamente ocorre menos (sobretudo em Portugal).

Assinale-se que as palavras latinas constituíam adaptações de duas palavras do grego antigo: com efeito, oleum corresponde a élaion, ou («azeite de oliveira»); e oliva, a elaía, as («azeitona; oliveira»).

Acrescente-se, por último, que azeitona (como o espanhol aceituna) vem do árabe dialetal hispânico (ou árabe andalusi) azzaytúna, que equivale ao árabe clássico zaytūnah, por sua vez um empréstimo da língua aramaica, com a forma zaytūnā, diminutivo de zaytā, «azeite», neste último idioma2. O topónimo português Azeitão (Setúbal) tem origem na mesma raiz árabe, na forma zaytún, «oliveiras», plural de zaytúna3.

 

1 Em espanhol, também se emprega o termo correspondente, aceite, para designar não só o azeite de oliva (ou, numa perspetiva mai...

Pergunta:

Sobre as novas medidas que começam às 00h de 15 de janeiro, ou seja, no inicio de sexta-feira, podemos dizer 00h e meia-noite?

Por exemplo, as novas medidas começam à meia-noite de sexta-feira? É a mesma coisa (tal como 12h é o mesmo que meio dia)?

Obrigado e feliz 2021,

Resposta:

A meia-noite de 14 coincide com as 00h00 do dia 15.

Em todo o caso, dizer «meia-noite», por um lado, e usar 24h00 ou 00h00, por outro, é empregar expressões que decorrem de perspetivas diferentes, mas que na prática querem dizer a mesma coisa.

Ainda assim, convém atentar no seguinte:

– Quando se diz «à meia-noite do dia 14», a referência vai para as 24h00 do dia mencionado, ou seja, marca o fim do dia mencionado, e não o princípio do dia seguinte, ou seja, as «00h00 do dia 15». É, portanto, estranho que se diga – por exemplo, como aqui se anuncia – que as medidas de confinamento são aplicadas a partir «da meia noite de sexta», quando o que se quer dizer realmente é que começam às 00h00.

– A expressão «meia-noite» – como acontece com as suas congéneres em espanhol, francês, italiano, inglês... –, é uma expressão tradicional e, portanto, surgida em tempos em que o tempo não era marcado pelo ciclo de 24 horas. Em galego, regista-se medianoite como «hora duodécima despois de mediodía, que marca a transición dun día a outro» (dicionário da Real Academia Galega). Mas em francês a definição pode ser mais clara, e associa-se minuit ao final do dia, e não às 00h00 do dia seguinte: «Heure du milieu de la nuit, la douzième après midi, la vingt-quatrième d'un jour» (tradução livre: «hora do meio da noite, a décima segunda depois do meio-dia, a vigésima quarta do dia»; Trésor de la Langue Française).

 – Tem sido este também o uso de meia-noite em português, como Maria Helena de Moura Neves assinala no seu 

Pergunta:

A respeito da origem da nasalidade em mui/muito, José Joaquim Nunes, no seu Compêndio de Gramática Histórica (1975[1911]), afirma o seguinte:

«embora MUI e MUITO sejam formas clássicas, nas cantigas 38 e 453 do Cancioneiro da Ajuda [séc.XIII], aparecem já nasaladas, como mostram as grafias MUYN e MUINTO donde se conclui não se moderna na língua a nasalização(...).»

Já o gramático Said Ali, na sua Gramática Histórica da Língua Portuguesa (1964[1931]), pensa diferente:

«No extraordinariamente usado MUITO , foi tão tardia a mudança, que o cantor d'Os Lusíadas [séc. XVI] ainda podia dar-lhe para rima FRUITO e ENXUITO. Não se sabe a data da alteração definitiva, porque em MUITO e MUI nunca se assinalou – caso único – a vogal nasal pela escrita. Que em português antigo se pronunciava a tônica como U puro e fora de dúvida, porque, em caso contrário, não lhe faltaria o til, sinal tão profusamente usado naquela época.»

1) O Cancioneiro da Ajuda é do séc.XIII, e Os Lusíadas do séc. XVI, qual dos estudiosos está certo ?

2) Há atualmente consenso entre os estudiosos a respeito de um período específico sobre o começo da nasalidade em mui e muito?

Grato pela resposta.

Resposta:

É difícil dizer qual dos dois estudiosos está certo – e talvez a pergunta até tenha de se formular de outra maneira.

Com efeito, o indício de mui e muito já se pronunciarem com nasalidade não é incompatível com a sua pronúncia oral, nem com a rima que possam estabelecer com os arcaísmos fruito e enxuito. Aliás, o que J. J. Nunes diz é que, pela leitura dessas ocorrências, se pode supor já haver nasalização, o mesmo é dizer que a pronúncia tinha passado definitvamente a ser nasal.

Na verdade, o que se deve ter passado corresponde a uma situação de variação linguística, em que as formas orais e as formas nasalizadas existiam em simultâneo no uso. De resto, nos dialetos setentrionais portugueses subsistem formas com ditongo oral, tal como acontece em galego. Além disso, não é seguro que a leitura que J. Joaquim Nunes faz das cantigas do Cancioneiro da Ajuda (ver também aqui) seja seguramente a de um sinal de nasalidade. Hoje sabemos que, na escrita medieval há vários diacríticos que podem não ser exatamente os dos dias de hoje.

Em suma, a nasalidade de mui e muito pode existir desde o período galego-português. Além disso, não é impossível que coexistisse com a pronúncia oral até bastante tarde, até aos séculos XVII ou XVIII.

 

 

 

Pergunta:

Em 1945 o gentílico «torreense» desapareceu. Uma palavra que está registada na história de Torres Vedras. Mas nos escritos nacionais atuais não existe e é considerado um erro. Porquê não voltar a colocá-la no dicionário?

Este “erro” nos dias de hoje ainda existe. Dá nome ao clube de futebol da cidade, dá nome a várias empresas desta terra e relembra as bandas, a filarmónica, os refrigerantes e tantas outras empresas que atualmente já não existem. Reforço, porquê não voltar a colocar esta palavra com história no dicionário? De acordo com o ponto C da alínea 2 da base V do Acordo Ortográfico de 1990, estabelecia desta forma as grafias: “goisiano (relativo a Damião de Góis), siniense (de Sines), sofocliano, torriano, torriense [de Torre(s)]”.

É curioso que sineense, (também uma palavra com história local), atualmente existe no dicionário e também é considerada nos escritos nacionais atuais um dos gentílicos de Sines. Torreense, uma palavra com história e memória local, é atualmente uma palavra sem significado e inexistente nos escritos nacionais atuais.

Aguardo uma resposta. Obrigado.

Resposta:

Desde há muito tempo que se escreve torriense (ver nos conteúdos em arquivo aqui e aqui). A forma torreense já tinha desaparecido da ortografia antes de 1945.

Com efeito, em 1940, o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) da Academia das Ciências de Lisboa fixava as grafias açoriano, siniense e torriense; no entanto, contraditoriamente consignava cabo-verdeano, que, depois de 1945, passou a escrever-se cabo-verdiano, com i.

As Bases Analíticas do Acordo de 1945 – generalizava a sequência -iense em gentílicos derivados de topónimos com e átono como vogal final:

«(Base IX, 3.º) 3.° Escrevem-se com i, e não com e, antes da sílaba tónica, os adjectivos e substantivos derivados em que entram os sufixos mistos de formação vernácula iano e iense, os quais são o resultado da combinação dos sufixos ano e ense com um i de origem analógica (baseado em palavras onde ano e ense estão precedidos de i pertencente ao tema: horaciano, italiano, duriense, flaviense, etc.): açoriano, cabo-verdiano, camoniano, goisiano («relativo a Damião de Góis»), sofocliano, torriano («de Torres Vedras»); siniense («de Sines»), torriense («de povoação chamada Torres»).»

É discutível o facto de, no VOLP de 1940, se con...

Pergunta:

Qual seria a definição correta de teodidata?

Resposta:

É um termo esporadicamente usado na língua portuguesa com o significado de «ensinado por Deus».

Os dicionários gerais não o registam, mas encontra-se em textos de caráter filosófico ou de teologia, que aludem à expressão «inspirados por Deus», provinda de um versículo do Evangelho de São João (6, 45):

(1) «Está escrito nos profetas: e serão todos ensinados de Deus.» (Frederico Lourenço, Bíblia. vol I. Novo Testamento. Os Quatro Evangelhos, Lisboa, Quetzal, 2016, p. 349)

Mas o vocábulo que passou a diferentes línguas ocidentais, entre as quais o português, com a forma teodidata, provém do grego bíblico theodidaktós, que figura na 1.ª Carta aos Tessalonicenses (4, 9) e significa «ensinado por Deus»:

(2) A respeito do amor fraterno não tendes necessidade que se vos escreva, pois vós próprios fostes ensinados por Deus a amar-vos uns aos outros.» (Frederico Lourenço,  Bíblia. vol. II. Novo Testamento. Apóstolos, Epístolas, Apocalipse, Lisboa, Quetzal, 2017, p. 382)

A palavra ocorre também em traduções diretas ou indiretas da obra do filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard (1813-1855).