Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Estava perguntando-me aqui o motivo de não haverem traduzido o título do livro de Gustave Flaubert Madame Bovary para "Dona Bovary". Vamos por partes.

No Brasil podemos referir-nos a uma mulher desconhecida de X maneiras:

1) Senhora – tanto para velhas como novas.

«A senhora irá à festa de Carlos.»

«Que horas são, senhora?»

Pode-se acrescentar o pronome possessivo minha para suavizar o solenidade. Se a mulher for casada ou a sogra, às vezes prefere-se usar dona.

2) Dona – sempre acompanhado do nome.

«A dona Ivete morreu ontem, sabia?»

«Dona Cleide, a senhor pode me fazer um favor?»

3) Madame, senhorita e senhorinha – de maneira mordaz, sarcástica.

«Então quer dizer que a madame não gosta do que faço?»

«Eu aqui trabalhando. E a senhorita aonde? A senhorita só na gandaia.»

«E a senhorita quer tudo de mão beijada? Quer que lhe lave as roupas, que faça o café, o almoço, a janta?»

Parece-me, de acordo com o uso no Brasil, o melhor seria "Dona Bovary".

Resposta:

Não sendo impossível, o parecer do consulente confronta-se com alguns problemas de uso do termo dona, quer no Brasil, quer em Portugal, quer, ainda, noutro país ou região de língua portuguesa.

Assim:

– Em relação ao uso de senhora, descrito em 1), ocorre aproximadamente o mesmo em Portugal, embora aqui,como vocativo, se tenda a dizer «minha senhora», e nunca ou raramente «dona».

– O título de dona, como indicado em 2, no comentário, tem sempre associado o primeiro nome, e nunca o sobrenome (em Portugal, apelido): uma pessoa que se chame Ivete Silva será sempre «a Dona Ivete» ou «a Senhora Dona Ivete», mas não *«Dona Silva» nem *«Senhora Dona Silva» (o * indica que é uso não aceite).

– Sobre 3, madame pode efetivamente ser usado em tom sarcástico, e até se regista a forma vulgar madama que reforça essa intenção. Sobre senhorita, nada a acrescentar, a não ser o facto de não se empregar em Portugal.

Acontece que, de acordo com 2,  "Dona Bovary" é impossível, porque é sobrenome; o mais que se poderá fazer é adaptar como «Dona Emma» (ou «Dona Ema»), uma vez que o primeiro nome da personagem é Emma (Ema em português"). Esta solução não será a mais satisfatória, porque, entre outros motivos, no romance de Flaubert a personagem  do marido, Charles Bovary, é de enorme importância, como se pode supor num romance que aborda o adultério.

Em alternativa, seguindo modelo de «senhora Thatcher» ou «senhora Merkel», que é frequente nos textos mediáticos, poderia propor-se «Senhora Bovary», uma solução preferível à anterior e muito semelhante ao que se faz em várias línguas eslavas (por exemplo, em polaco,

Pergunta:

Não encontro a palavra "aclaratória" no dicionário de Português Priberam.

Ela não existe?

Resposta:

A palavra em questão existe, tem registos dicionarísticos, mas é pouco usada.

O adjetivo aclaratório não figura no Dicionário Priberam nem no Dicionário Infopédia, mas encontra-se noutras fontes. Por exemplo, na versão eletrónica do dicionário de Caldas Aulete e no Grande Dicionário da Língua Portuguesa de José Pedro Machado; além disso, também consta dos vocabulários ortográficos1. É um adjetivo que, como aclarador (este um pouco mais presente nos registos lexicográficos2), deriva do tema do verbo aclarar, sinónimo de clarificar e esclarecer.

Acontece que aclaratório se usa pouco, em comparação com os mais correntes clarificador e esclarecedor, adjetivos sinónimos também derivados dos temas dos verbos acima mencionados. Com efeito, uma consulta do Corpus do Português , de Mark Davies, permite observar que aclaratório não se deteta na secção história e, na secção dialetal, só ocorre (25 ocorrências) em textos recentes, em algumas passagens de natureza jurídica e alguns textos jornalísticos.

1 Aclaratório está registado no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (1940) da Academia das Ciências de Lisboa e no Vocabulário da Língua ...

Pergunta:

Acerca das várias respostas dadas pelo Ciberdúvidas sobre «ir ao encontro» vs «ir de encontro», gostava de vos expor este meu raciocínio de mera intuição linguística.

Eu ir de encontro a alguém na rua é dar-lhe um encontrão, é ir contra ele. Não há qualquer dúvida quanto a isso. Agora «ir de encontro» ao que o alguém pensa ser «ir contra» o que essa pessoa pensa já me parece ser uma transposição demasiado literalista de uma expressão usada no plano físico, transposta abusivamente e com o mesmo sentido para o plano das ideias. Até porque as ideias não andam aos encontrões umas às outras...

Sinto o «ir ao encontro» e o «ir de encontro» ao que alguém pensa como expressões de valor equivalente. O «ir ao encontro» implica um percurso, um caminho, algo mais lento, o «ir de encontro» ao que alguém pensa como algo mais imediato e forte, uma espécie de: Bingo. É isso mesmo!

É o que me diz a minha sensibilidade linguística, admito que numa interpretação bastante própria. Sei que o Ciberdúvidas não concorda com ela, mas gostava, mesmo assim, de saber, se a acham demasiado abstrusa...

Eu, francamente, acho algo sui generis considerar «ir de encontro» ao que o alguém pensa como «ir contra aquilo que essa pessoa pensa»...

Resposta:

O que é dito pelo consulente parece coincidir com um tipo de exercício de intuição linguística praticado em modelos que pressupõem uma gramática interna – por exemplo, a das propostas generativistas no mundo anglo-saxão, embora também haja algo metodologicamente parecido na investigação francófona.

Quanto à transposição metafórica, ou seja, no domínio da metáfora linguística, há muita criação que acaba por se tornar corrente e ser permitida, a ponto de se fixar lexicalmente e figurar nos dicionários. Também é frequente que a transposição metafórica acarrete alterações semânticas de modo a acomodar o conteúdo transposto ao cenário que, no léxico mental, o acolhe e enquadra.

Numa perspetiva mais empírica, de identificação dos padrões de uso, acontece que, consultando a secção histórica do Corpus do Português (Mark Davies), a primeira impressão é de que as ideias de choque e pressão, em referência ao mundo físico, parecem ter associação (surpreendentemente?) estável com «de encontro a». É em textos mais recentes que se detetam os «de encontro a» não "confrontacionais"; mas, a supor que a confusão é recente, pode ela dever-se a um viés da constituição do corpus consultado:

(1) «Uma vez que parte da obra de Abel Salazar permanece ainda em parte incerta, ampliar e perpetuar o conhecimento acerca do seu patrono é o objectivo da Casa-Museu. Tal objectivo vai de encontro ao desiderato subjacente a toda a acção, cultural ou científica, do próprio Abel Salazar[...].» (Um espírito renas...

Pergunta:

Face ao nome de uma série da Netflix sobre xadrez agora em voga, e à divergência quanto à acentuação da palavra, venho solicitar a seguinte informação: deve usar-se o termo "gambito" ou "gâmbito"?

Resposta:

A forma correta é gambito1.

Esta é a denominação de um «ardil, manha usada para derrubar o adversário,num confronto» ou, no xadrez, de um «[...] lance que  consiste em sacrificar um peão para, em troca, causar a perda de uma peça importante do jogador adversário» (dicionário da Academia das Ciências de Lisboa); pode ainda ser sinónimo, na linguagem popular, de perna, que também se diz gâmbia num registo vulgar, próximo ou já dentro do calão.

Gambito terá origem no italiano gambetto, com significado de «rasteira, cambapé», segundo o Dicionário Houaiss. No entanto, a relação entre a palavra portuguesa e a italiana pode não ser direta.

Com efeito, a forma correspondente castelhana, gambito, que é idêntica à portuguesa, ainda que também se filie no referido termo italiano, pode bem ser antes a adaptação de gambittu, forma dialetal da Sicília ou do sul da península da Itália (cf. Diccionario Crítico Etimológico Castellano e Hispánico, de Joan Coromines e José Antonio Pascual). Não se exclui, portanto, que gambito tenha entrado no léxico português como empréstimo de um termo castelhano que, por sua vez, era também empréstimo proveniente de terras italianas meridionais, o que se explica pelo domínio catalano-aragonês e mais tarde espanhol sobre essas ...

Pergunta:

Tenho vindo a encontrar a expressão «Fricativa (a) surda a) Variantes: Uvular, Velar, Lateral, Dental, Palatal».

Creio tratar-se de alguma terminologia gramatical que desconheço. Podem ajudar-me?

Já agora e falando a sério, com os 74 anos que tenho, será que devo voltar aos "bancos de escola" para me actualizar?

Grato pela vossa simpatia.

 

N.E. – O consulente adota a ortografia de 1945.

Resposta:

Trata-se da classificação das consoantes no âmbito do estudo da fonética e da fonologia.

É matéria abordada sem grande aprofundamento no ensino não universitário, apesar de muito interessante e útil. Mesmo assim, não constitui grande novidade no currículo básico e secundário, visto que na década de 70 do século passado já fazia parte da descrição dos sons do português (cf. por exemplo, Compêndio de Gramática Portuguesa de Nunes de Figueiredo e Gomes Ferreira,1976).

Quem pretenda atualizar-se nesta área, pode consultar as páginas de A pronúncia do português europeu, um guia em linha, alojado no sítio eletrónico do Camões – Instituto da Cooperação e da Língua. Também pode ajudar a consulta da secção de fonética e fonologia do Dicionário Terminológico (DT).

Segue-se o registo dos termos em questão acompanhados de definições e exemplos (entre barras ou colchetes1, usam-se os símbolos do Alfabeto Fonético Internacional):

Fricativa: é um termo que define o modo de articulação de uma consoante2; este modo de articulação combina-se com diferentes pontos de articulação para produzir as consoantes de uma língua; em português, há uma série de fricativas surdas – os segmentos /f/, /s/ e /ʃ/, grafados,  f, ç e ch respetivamente, como na mnemónica «faç