Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

O Dicionário Houaiss data a palavra lusíada de 1530, ou seja, quarenta anos de Luís de Camões ter publicado Os Lusíadas.

Que uso teve a palavra até à publicação da epopeia?

O mesmo dicionário data a palavra lusitano de 1572, a data de Os Lusíadas. Parece estranho que lusíada tenha surgido antes de lusitano. Há um explicação para tal?

Resposta:

Encontra-se muita informação sobre a criação e uso de lusíada no artigo que lhe dedica Virgínia Soares Pereira no Dicionário de Luís de Camões (Editorial Caminho, 2011), coordenado por Vítor Aguiar e Silva.

Nesse texto refere-se que o termo foi criado pelo humanista português André de Resende (c.1500–1573), num poema latino de 1531, no contexto da literatura neolatina, portanto, durante o movimento de recuperação do latim clássico que caracterizou o Humanismo e a época do Renascimento. O termo volta a ser utilizado por Resende em 1534, ainda em latim e sempre como termo literário, até Camões o ter empregado como título do seu poema épico.

Quanto a lusitano, não é de admirar que o seu uso em português seja surpreendentemente tardio, porque se trata de uma palavra erudita. O português medieval parece desconhecê-lo. Contudo, segundo o mesmo artigo de Virgínia Soares Pereira, a palavra lusitanus, em latim, figura num texto português de 1545, também de André de Resende. Não é, portanto, implausível que o termo já tivesse adaptação ao português em meados do século XVI.

Acrescente-se que lusíada é um nome e adjetivo derivado do antropónimo Luso, «personagem mitológico, filho ou descendente de 

Pergunta:

No Brasil, pelo menos, se diz muito «Ele quebrou os copos TUDO», mas também «Ele quebrou TODOS os copos».

Por que, estando o pronome no fim, há a mudança de um por outro?

É errada a primeira alternativa?

Resposta:

A primeira frase está errada à luz da norma culta, porque é necessário que o quantificador todo , no sentido de «inteiro», concorde com o nome que determina na frase em questão: «quebrou os copos todos».

Contudo, é possível examinar «quebrou os copos tudo» no âmbito dos estudos de variação linguística. Ainda assim, nas fontes brasileiras consultadas1, não foi possível identificar estudos ou comentários especializados que mencionem o uso em apreço, nem mesmo para o assinalar e censurar como erro. Não há, portanto, maneira de aqui atestar este emprego em trabalhos da linguística descritiva, muito embora seja tentador supor que se trata da tendência para evitar a redundância de marcas do plural na fala popular brasileira.

 

1 Cf. Evanildo Bechara, Moderna Gramática Portuguesa (Nova Fronteira, 2002), Maria Helena Moura Neves, Guia do Uso do Português: confrontando regras e usos (São Paulo, Ed. Unesp, 2003) e Napoleão Mendes de AlmeidaDicionário de Questões Vernáculas (Ática, 2003).

Pergunta:

Li em outro site que a tartaruga tem esse nome porque foi diretamente associada ao Tártaro (o inferno dos antigos gregos) porque, devido a seu hábito de se banhar na lama, foi confundida com uma criatura demoníaca.

Há quem negue isso ter a ver, muito embora outros sites, de fato, confirmem que ganhou o nome em referência ao Tártaro (mas não entendem a associação, pois é um animal bem limpinho!). No caso, essa história do banho na lama originar o nome do animal procede ou não? Isso é, vocês podem me dar a confirmação disso (seja ela a favor ou contra no caso...)?

Leiam bem aqui.

Resposta:

Em matéria de etimologia nem sempre se consegue produzir enunciados indubitáveis, razão por que não é possível dar a confirmação que é pedida. É sempre mais prudente, perante vários casos, falar-se de etimologias que são altamente prováveis.

Pode, portanto,  aqui assinalar-se que explicação da origem do nome tartaruga exposta na pergunta é a etimologia mais aceite, conforme se comenta no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa:

«provavelmente do latim tardio tartarucha ou tartaruca (na expressão *bestia tartaruca 'besta tartaruga'), feminino substantivado do adjetivo do latim tardio tartaruchus ou tartarucus, a, um, adaptado do grego tartaroukhos 'que habita o Tártaro, que pertence ao inferno, demônio', derivado do grego Tártaros 'Tártaro, inferno' e radical do verbo grego oikó 'habitar, morar'; os orientais e os antigos cristãos consideravam a tartaruga, por viver no lodo, a personificação do mal e da heresia, em oposição ao galo, símbolo do espírito, da luz, do bem; cp. italiano tartaruga, espanhol tortuga (tartuga em 1490), francês tortue; o inglês turtle é provável corruptela do francês tortue, devido aos marinheiros ingleses; em alemão ocorre Schildkröte, de Schild 'escudo, carapaça' e Kröte 'sapo'»

Pergunta:

Junto envio uma citação que contém a palavra "alfoque".

«Ti Chico é mais prático na descrição: "Joga-se o berbigão para dentro da murejona pela boca. Leva um cabo grosso, põe-se um alfoque e atira-se ao mar."» (jornal Barlavento, 01/10/2020, p. 8)

Consultei vários dicionários da língua portuguesa e outros do léxico algarvio, mas sem sucesso.

Espero que consigam satisfazer a minha curiosidade.

Obrigado.

Resposta:

O contexto permite inferir que pela palavra alfoque se denota algum tipo de nó utilizado nas artes de pesca.

Com efeito, é esta a conclusão mais provável, até porque há registo de formas algo parecidas, com essa semântica. Por exemplo, José Pedro Machado, no seu Grande Dicionário da Língua Portuguesa (Lisboa, Círculo de Leitores, 1991), recolhe alforques, que remete para alfornes, o mesmo que «cabos que, em certas redes, partem da cadoura para as tralhas»1. A remissão é mais da ordem da sinonímia, porque o autor citado não esclarece a relação formal (fonética) que se intui entre alforques e alfornes, muito embora seja praticamente impossível explicar a passagem de -q- a -n- e vice versa. Talvez a relação entre as duas palavras não seja estabelecida por regras fonéticas ou fonológicas, mas por algum fenómeno de analogia, que não é, por enquanto, claro.

Seja como for, na Internet, numa página em inglês ocorre alfoque, que se define como «nó corredio» («slipping knot») na frase «each pot has a rope around its neck with a slipping knot (“alfoque”)» [= «cada vaso tem um cabo amarrado à volta da boca com um nó corredio ("alfoque")»].

É de assinalar, contudo, que Eduardo Brazão Gonçalves (Dicionário do Falar Algarvio, Algarve em Foco Editora, 1996) recolhe alforque, no sentido de «pe...

Pergunta:

Gostaria de saber se é correto dizer «fazer uma festa», ou «festas a alguém», com o significado de «carícia».

Na minha terra natal diz-se muito, por exemplo, «fazer festas» às crianças, com esse significado de as acariciar.

Muito obrigada desde já.

Resposta:

Trata-se de um expressão normalíssima em português, que se atesta tanto em Portugal como no Brasil e noutros países.

Encontra-se «fazer festas», que pode eventualmente realizar-se como «fazer uma festa», como sinónimo de acariciar em alguns dicionários. Não se acha, é certo, nos dicionários eletrónicos do português de Portugal – Dicionário InfopédiaDicionário Priberam –, mas há registo da expressão no dicionário de Caldas Aulete e no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa (2001), onde se pode ler como definição de festa (mantém-se a ortografia do original):

«5. Toque suave da mão no corpo de pessoas ou animais, como demonstração de afecto, ternura. ≃ AFAGO, CARÍCIA, MEIGUICE. Fez uma festa ao cão. Foi fazendo festas à criança até esta adormecer. Fazer uma [festa], fazer [festa]s

A variante «fazer festa», com festa sem artigo e no singular, figura em dicionários brasileiros, como sejam o Dicionário Houaiss e o Michaelis Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa.

Em tom carinhoso, é também comum dizer-se em Portugal «fazer festinhas» (por exemplo, a um bebé ou a um animal).