Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Estava eu assistindo ao filme O Pai Tirano, de 1941 [com realização de António Lopes Ribeiro], e ouvi um personagem dizer ao outro «Cê tá maluco»*.

Pensei que era só o Brasil que usava a redução.

Portugal também a usa, mas em que escala?

*Em 1:36:42 do filme.

Resposta:

A forma , redução de você, não é impossível em Portugal, mas não parece ter aqui uso estável nem sistemático como no Brasil.

Pode produzir-se ocasionalmente, por exemplo, numa frase exclamativa, como é o caso da ocorrência no filme citado, em que o ator (Ribeirinho) concentra toda a força da elocução na sequência «tá maluco» (em que é a forma popular de está), com o resultado de você ficar reduzido à sílaba tónica -.

É igualmente de notar que a descrição linguística não tem reconhecido como uma variante autónoma de uso consistente no português de Portugal. Com efeito, enquanto a forma tem presença em alguns dicionários brasileiros1 como variante de você, na lexicografia portuguesa2 apenas está ela consignada como o nome da letra assim chamada.

 

1 Ver Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa s. v. 2 (trata-se de homónimo da entrada 1, nome da letra C)  e Michaelis Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. A versão eletrónica do dicionário de Caldas Aulete também acolhe como variante reduzida de você.

2 Foram consultados o Novo Dicionário da Língua Portuguesa (1913), de 

Pergunta:

Vi no dicionário do Google que quisto era particípio passado de querer. Quando é que o suplantou o particípio querido?

Resposta:

Não foi possívei aceder a fontes que facultassem dados precisos sobre a distribuição das duas formas participiais no período medieval.

Mesmo assim, pode supor-se que as duas formas terão coexistido como particípios passados na Idade Média. Acontece, porém, que quisto, pelo menos, do século XVI em diante1, se especializou e passou a ocorrer quase apenas em expressões como «bem quisto» e «mal quisto», que deram origem às formas aglutinadas benquisto e malquisto2.

1 Foi consultado o Corpus do Português, de Mark Davies.

2 Cf. o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea (2001) da Academia de Ciências de Lisboa e o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.

Pergunta:

Qual seria a melhor tradução para português da palavra inglesa perfunctory?...

Em várias traduções surge como significando «superficial», «descuidado», «apressado» ou até «negligente». Aparentemente estes termos corresponderão ao significado do latim tardio perfunctōrius, no entanto esta palavra não terá tido um correspondente na língua portuguesa (que poderia ser útil).

Aplicar-se-á melhor a expressão «por mera formalidade»? (Oxford Languages) Estará mais dependente do contexto?

Parece-me que no inglês há uma componente interessante e algo distinta, frequentemente aplicada, que corresponde a algo executado meramente como rotina ou pró-forma («performed merely as a routine duty»), porque tem de ser feito, mas associado a uma conotação mais negativa de claro desinteresse, de evidente falta de empenho e até irrelevância efetiva para o executante.

Resposta:

A palavra perfunctório está registada em português desde os começos do século XVIII e não parece ter um significado muito distinto do seu cognato inglês. Com efeito, consultando o Dicionário Houaiss, vê-se que o adjetivo é definido do seguinte modo:

«1 que se faz de modo rotineiro, em cumprimento de uma obrigação; 2 que tem pouca utilidade; ligeiro, superficial»

Não se trata de um registo meramente brasileiro, visto que também está consignado no dicionário de Cândido Figueiredo; e igualmente se encontra no dicionário da Porto Editora (Infopédia).

Em conclusão, o inglês perfunctory e o português perfunctório não são falsos amigos. Contudo, se se achar que perfunctório se usa pouco em português (o que também não se confirma claramente), pode recorrer-se a advérbios e locuções como negligentemente, «com negligência», «sem imaginação», «com desinteresse» ou os adjetivos sugeridos na pergunta.

Pergunta:

Se a preposição dissílaba para é átona, teria ela sílaba tônica?

Foi a pergunta de um aluno. Pareceu tão óbvia que fiquei com a pulga atrás da orelha. De repente há alguma informação que me escapa, por isso venho pedir ajuda.

Muito obrigado!

Resposta:

A pergunta justifica-se, porque para é palavra vista como átona, apesar de dissílaba.

Entre as fontes consultadas para a elaboração desta resposta, não se encontram comentários que abordem diretamente este caso. Contudo, conforme se pode verificar na transcrição fonética da entrada respetiva no Dicionário Infopédia, a primeira sílaba é tónica, quando a palavra é proferida separadamente: [ˈpɐɾɐ].

Quando a preposição ocorre associada em grupos sintáticos, a sua prosódia fica subordinada à palavra seguinte – daí que se dê frequentemente a síncope do primeira a: «para pensar» – [pɐɾɐpẽˈsaɾ]; ou «prapensar» [pɾɐpẽˈsaɾ] (transcrição da pronúncia padrão portuguesa; cf. Vocabulário da Língua Portuguesa).

Pergunta:

No Brasil, algumas pessoas pronunciam a terceira pessoa plural do pretérito perfeito como se terminasse em "o" em vez de "am".

Por exemplo, ouve-se dizer «Eles não me devolverO(am) o dinheiro».

É coisa do Brasil só? De onde vem isso?

Resposta:

É um arcaísmo da língua portuguesa que permanece em diferentes países.

Vem da desinência antigo -rom, da 3.ª pessoa do plural do pretérito perfeito do indicativo. É uma forma que também ocorre em Portugal, na linguagem popular, e que parecer remontar à língua medieval, na sua fase galega ou galego-portuguesa. Note-se, aliás, que em galego se mantém esta terminação: cantaron, comeron, partiron (cf. Dicionario da Lingua Galega da Real Academia Galega).

É frequente esta terminação perder a nasalidade e reduzir-se a "-ro", sobretudo com verbos da 2.ª conjugação:"comero" (comeram), "devolvero" (devolveram), "fizero" (fizeram), "pusero" (puseram), "trouxero" (trouxeram).