Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

O Novo Dicionário da Língua Portuguesa de Cândido de Figueiredo; Topónimos e Gentílicos de I. Xavier Fernandes; Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira e Enciclopédia D.N. – todos eles assinalam dois gentílicos para a referida cidade nortenha: matosinhense e matosinheiro.

Em roda de amigos surgiu a dúvida sobre matosinheiro. Se bem que a mais comummente empregado seja matosinhense, podemos considerar errado matosinheiro ou ambos estão absolutamente correctos?

Agradeço o vosso empenho em prol da língua portuguesa.

A resposta segue o Acordo Ortográfico de 1945.

Resposta:

As duas formas estão corretas, mas podem não ter o mesmo uso.

Matosinhense é a forma mais corrente, que tem registo lexicográfico estável, como acontece no Vocabulário da Língua Portuguesa (1966), de Rebelo Gonçalves. Já o gentílico acabado em -eiro parece sugerir uma visão menos formal, evocando um ambiente mais popular.

Contudo, não se julgue que a forma terminada em -eiro é incorreta. Por exemplo, em relação a Peniche, I. Xavier Fernandes (Topónimos e Gentílicos, 1.º vol., p. 236) regista dois gentílicos, penichense e penicheiro, sem indicação de que esta segunda forma possa estar incorreta. Além disso, na formação de gentílicos, nem sempre a intervenção do sufixo -eiro denota informalidade. Se assim fosse, dir-se-ia obrigatoriamente brasiliense", e não o consagrado brasileiro, como nome pátrio do Brasil.

Cf. Lista de gentílicos

Pergunta:

Encontrei no fim de uma carta de 1926 a expressão de despedida «Somos Atos e Ves».

"Atos" julgo corresponder a uma forma mínima de Atentos.

Já o "Ves",que parecendo, embora, ter origem no vocábulo venerável suscita-me dúvidas, pelo que muito agradeço uma V. resposta.

Cumprimentos

Resposta:

Trata-se de uma abreviatura possível da fórmula «atentos e veneradores», que ocorria na correspondência formal.

A abreviatura  tradicional de atento é at.o1, sem maiúscula inicial, pelo que é legítimo inferir que at.os  seja o plural correspondente, e "Atos" constitua uma grafia mais descuidada, sem ponto abreviativo.

Já a abreviatura de venerador tem variantes2: v.or e ven. dor, sem maiúscula inicial. Não foi possível identificar uma abreviatura estável para o plural correspondente, não se excluindo que também este estivesse sujeito a certo arbítrio. No caso em questão, parece ter faltado mais uma vez o ponto: "Ves", em lugar de v.es.

De qualquer modo, a fórmula em questão só poderá ser «atentos e veneradores», uma versão mais breve do plural de «atento, venerador e obrigado», que caiu em desuso e se revestia de alguma deferência exagerada, como já observava Vasco Botelho de Amaral em 1958 (cf. nota 2):

«A antiga fórmula do at.º, ven.dor e obrigado é complicada.

[...] E Agostinho de Campos comentou:

"Era preciso acabar com... os amigos, atentos, veneradores e obrigados, por extenso ou abreviados, e substituir  toda esta tralha por fórnulas mais rápidas, e até por uma palavra só [...]".»

 

1 Foi consultado o "Registo de abreviaturas" em apêndice ao Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) que a Academia das Ciências de Lisboa publicou em 1940.

2 Cf. VOL...

Pergunta:

Sou natural duma aldeia da Serra da Freita onde nos anos 1960 ainda se dizia o verbo trazer no pretérito perfeito de forma peculiar: troube, troubestes, troube, troubemos, troubero(um).

Haverá alguma explicação para essa peculiaridade?

Resposta:

Trata-se de uma variante, entre outras (p.ex. trougue), do radical do pretérito perfeito do indicativo do verbo trazer. São formas bastantes antigas e tinham até ao século XX (ou ainda têm) uso dialetal. Surgiram por analogia com houve, 3.ª pessoa do singular do pretérito perfeito de haver.

Sobre a génese desta e doutras variantes de trouxe, diz o filólogo e linguista francês Paul Teyssier (1915-2002), no seu estudo A Língua de Gil Vicente (Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005; manteve-se a ortografia do original):

«[As formas de perfeito] oferecem-nos um bom exemplo das acções e reacções analógicas que interferem na formação das flexões verbais. Gil Vicente diz normalmente trouxe, como a língua literária moderna. Este trouxe representa foneticamente *tracsui, que deve derivar do perfeito clássico traxi, cuja terminação terá sido modificada por analogia com os perfeitos em -ui do tipo placui, jacui. Quanto à variante rústica trougue, resultada mesma acção analógica, mas que se verificou de modo mais completo: segundo o modelo de placere, placui, e de jacere, jacui, ter-se-á formado *tracere, *tracui, e daí, por evolução fonética normal, tracui >trougue, como placui > prougue e jacui>jougue. Finalmente, a terceira forma atestada em Gil Vicente, trouve, que, como vimos, também tem nítido valor rústico, é o resultado de uma outra analogia, que consistiu em assimilar todos os perfeitos em -ougue a houve, perfeito de haver: disse-se trouve em vez de trougue, como prouve em vez de prougue e jouve em vez de jougue.»1

S...

Pergunta:

Gostaria de saber qual o real significado da expressão brasileira «rodar a baiana».

«Eu rodo a baiana, mas você só sai dessa sala quando terminar as atividades.»

Obrigado!

Resposta:

Trata-se de uma expressão idiomática brasileira que tem registo dicionarístico: «rodar a baiana: reclamar ou brigar com escândalo», segundo o Dicionário Houaiss, que em nota etimológica acrescenta que, na locução, baiana se deve entender «como roupa de baiana com saia rodada».

A sua origem não parece clara, mas a tese mais aceite1 encontra-se sintetizada no Wiktionary, com base em fonte jornalística brasileira2:

«Nos blocos de carnaval do Rio de Janeiro, no início do século XX, alguns foliões apertavam as nádegas das moças fantasiadas que desfilavam. Para evitar isso, alguns capoeristas desfilavam no meio dessas moças, fantasiados como elas. Quando alguém tinha algum ato desrespeitoso com as moças, os capoeristas atacavam. Quem estava de fora e não estava informado da situação via apenas "rodar a baiana" e, em seguida, iniciar-se uma grande confusão.»

Acrescente-se que, no contexto desta expressão, baiana deve entender-se não como «mulher habitante ou natural da Bahia», mas, sim, como «indumentária tradicional das negras e mestiças da Bahia, que consta de saia comprida muito rodada, bata de renda, torso ou turbante, pano-da-costa, chinelas, colares, brincos e balangandãs» (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa) e, mais concretamente, à saia, que roda.

 

1 Cf. "rodar a baiana", Wiktionary, consultado em 26/09/2020.

2 "Rodar a baiana", Aventuras na História, 01/06/2006 e 23/...

Pergunta:

Gostaria de saber se há alguma razão conhecida para o facto de, para os lados das chamadas «Terras de Santa Maria», ou seja, Santa Maria da Feira e arredores, haver uma pronunciação muito estranha do verbo entrar, nomeadamente entre as pessoas mais velhas, mas que ainda não cessou de ser transmitida também aos mais novos.

Ora acontece que por aqui, em vez de «tu entras por aquela porta e viras à direita», há muitas pessoas que pronunciam «tu éntres por aquela porta e viras à direita». Já quando se usa o plural, também aqui se diz «eles éntrem na casa pela garagem», em vez de «eles entram em casa pela garagem».

Gostaria também de perceber se isto, a ser um regionalismo, é exclusivo desta região, ou se estas formas distorcidas (e que, confesso, muita confusão me fazem) também são encontradas noutras regiões do país.

Obrigado.

Resposta:

Os dois casos em questão, objeto de descrição linguística de tipo dialetológico ou sociolinguístico, dizem respeito a formas não aceites pela norma-padrão, quer em Portugal noutros países de língua portuguesa.

Assim, em relação ao primeiro caso, "éntres", não se encontraram registo nem comentário nas fontes disponíveis1. No entanto, fica aqui mencionado como atestação.

No segundo caso, está documentada a convergência de -am em -em nas formas da 3.ª pessoa do plural do presente e do imperfeito do indicativo dos verbos da 1.ª conjugação. Diz-se, portanto, "andem" ou "plantem", em lugar das formas corretas andam e plantam; além disso, chega-se a pronunciar "queimavem", em vez de queimavam, ou "apanhavim" (o mesmo que apanhavam), ainda com maior redução vocálica2. Em Portugal, é um fenómeno especialmente frequente no Sul e nas ilhas, entre população menos escolarizada e/ou menos exposta  aos usos normativos.

1 Foi consultada a Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, pp. 127/128) e a Revista Lusitana (1887-1943).

2 Cf. Gramática do Português (pp. 127/128).