Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Deparo-me com a antiga expressão «em rama» utilizada no sector de transformação de produtos como «farinhas em rama (moagem de, por exemplo)», «algodão em rama», «açúcar...», entre outros. Significa algo em bruto, não processado, como por exemplo, a primeira farinha extraída logo após a primeira passagem na mó.

Muito comum nas antigas moagens, o termo caiu em desuso nas moagens modernas.

Seja como for, não encontro em lado nenhum uma explicação para a origem linguística da expressão «em rama». Apenas a ligação com a outra expressão, «pela rama», ou seja, superficialmente, mas desconfio que esta é que tenha derivado da outra.

Obrigado pela atenção.

Resposta:

Não há consenso sobre a origem de rama, palavra que figura na locução «em rama», no sentido de «em bruto, tal qual se extrai, não industrializado» (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, consultado em 07-05-2022), que ocorre «também usado substantivamente: ramas de açúcar, ramas de petróleo» (ibidem).

São vários os dicionários que a identificam com rama («ramagem»), mas há também quem defenda – Antenor Nascentes – que a forma é adaptação do francês rame, empréstimo talvez transmitido pelo castelhano. Note-se que o francês rame denomina sobretudo um grande quantidade de folhas (cf. Trésor de la Langue Française) e é termo com origem no vocábulo catalão raima, cognato, afinal, de resma e como esta última forma também proveniente do árabe vulgar hispánico rázma (cf. Diccionari Català).

A transmissão castelhana da palavra ao português é sugerida pelo facto de o dicionário da Real Academia (s. v. rama) registar a locução «en rama», homóloga do português «em rama», e atribuir-lhe a referida génese francesa.

Não obstante, é preciso realçar que um conhecido arabista, Federico Corriente (1940-2020), considera que «en rama» exibia a palavra rama, o mesmo que o português rama e, portanto, de origem latina, por derivação de ramo. O filólogo espanhol rejeita, portanto, a hipótese árabe, porque, segundo ele, além de esta levantar dific...

Pergunta:

Primeiramente gostaria de cumprimentá-los pela excelente prestação de serviços com que somos brindados pelo Ciberdúvidas!

No português brasileiro, a oposição pronome reto X pronome oblíquo átono não é levada a sério na fala espontânea, ficando restrita à língua escrita formal. Assim, são comuns frases como «eu conheço ele», «eu encontrei ela», «eu vi elas», etc.

O único caso que se obedece é a oposição eu e me e, mesmo assim, entre pessoas de muito baixa escolaridade, pode-se ouvir um «ele viu eu» ou, ainda pior, «ela me viu eu». [...]

Eu gostaria de saber, afinal, se em Portugal, na fala espontânea, podem-se encontrar construções com o pronome reto empregado em vez do oblíquo átono.

PS.: Não há problemas para o brasileiro, mesmo de pouca instrução, em relação às formas tônicas.

Resposta:

Em Portugal, mesmo na fala informal, mantém-se o uso dos pronomes átonos – os «pronomes oblíquos átonos» da terminologia brasileira, ou seja, da Nomenclatura Gramatical Brasileira de 1959 – com a função de complemento direto (ou objeto direto, para seguir a terminologia brasileira).

São, portanto, insólitas as formas «ele viu eu» ou «ela me viu eu», e normal a forma «ela viu-me» (com a tendência para ênclise do português de Portugal, em frases simples cujo verbo não esteja modificado por advérbios).

Contudo, como já foi dito em resposta anterior, é preciso assinalar que construções na 3.ª pessoa, como «eu conheço ele», «eu encontrei ela» ou «eu vi elas» não são desconhecidas de todo, quando verbos de perceção como ver ou verbos causativos como mandar são seguidos de orações de infinitivo: «eu vi ela chegar» (em vez do correto «(eu) vi-a chegar»); «mandei ela escrever uma carta» (talvez menos frequente, em vez do correto «mandei-a escrever»).

Também são correntes os pronomes oblíquos em construções muito informais – «olha ela toda bonita» – e até algo infantis como «ó mãe, olha eu a andar de bicicleta sem mãos».

É possível, portanto, que o uso brasileiro resulte de alguma convergência entre inovações locais e construções mais marginais que já eram produzidas pelos colonizadores portugueses. É uma hipótese que, dadas as fontes consultadas, não se pode aqui confirmar.

Pergunta:

O que significam as duas expressões «tratar por alto» e «tratar com amor»? Podia criar umas frases?

Muito obrigada.

Resposta:

A expressão «tratar por alto» significa «falar de um tema de forma rápida ou superficial». A expressão «tratar com amor» significa «tratar com cuidado».

Exemplos:

(1) Como não temos muito tempo para falar de todos os temas, vamos tratar por alto muitos deles. [também possível «vamos falar por alto»]

(2) Este jardim é muito bonito, porque é tratado com amor. [também possível «é cuidado com muito amor»]

Mencionem-se outras expressões que incluem o verbo tratar1:

tratar a fundo: «ir até à raiz de um assunto»

tratar-se à grande ou tratar-se à grande e à francesa (ou «viver à grande e à francesa»): «viver com grande fausto»

tratar-se à lei da nobreza: ver «tratar-se à grande e à francesa»

tratar com desprezo: «falar com desprezo, com atitudes de desprezo»

tratar com dureza: «tratar com disciplina rigorsa, com inflexibilidade»

tratar com luvas ou tratar com luvas de pelica: «tratar com muita delicadeza»

tratar como um cão: «ser rude para com alguém»tratar de alto ou tratar de cima para baixo: «falar com altivez e arrogância com alguém»

tratar da saúde (familiar): «castigar alguém (com eventual agressão)»

tratar da vida: «trabalhar, cuidar de negócios, arranjar ocupação»

tratar de igual para igual: «falar com alguém como se fosse da mesma posição social»

tratar de negócios: resolver assuntos relativos a um negócio»

tratar de resto: «deprezar, não fazer caso»

tratar dos seus interesses: «tratar apenas dos seus assuntos (eventualmente, prejudicando até outras pessoas)»

tratar friamente: +sem cordialidade, sem sinal de simpatia»

...

Pergunta:

Sabem se haverá algum nome para nos referirmos ao uso da vogal “a”, na oralidade, em “que sa lixe” («que se lixe»)? 

Resposta:

Pode considerar-se que se trata de um fenómeno de alteração (cf. Dicionário Terminológico) de um segmento vocálico em posição pretónica – neste caso, o e átono que passa a a átono fechado –, ou seja, que ocorre antes da sílaba tónica de palavra ou de grupo de palavras sujeito ao acento tónico de uma delas.

Este tipo de alteração ocorre no português de Portugal, ao que parece quando se dá ao enunciado maior ênfase e, portanto, quando as sílabas são articuladas com maior tensão, mesmo que sejam átonas.

Não foi possível identificar estudos que abordem esta situação, mas o fenómeno é detetável em registos informais (ou até vulgares, se não grosseiros) em palavras isoladas, como "Sabastião" em vez de Sebastião, ou com sequências de palavras, como acontece com o exemplo em questão – «que sa lixe» – e noutros – «que ganda [grande] confusão!». Neste último caso, em "ganda", regista-se também a queda de r, simplificando-se a estrutura da primeira sílaba de grande.

Pergunta:

No jornal Público de 11 de Fevereiro de 2022, Clara Barata escreve sobre a morte do prémio Nobel da Medicina em 1983, Luc Montagnier [1932-2022], a propósito de ideias bizarras que a partir de certa altura o cientista passou a emitir. Na sequência dessas bizarrias a articulista escreve e cito: «Tudo isto levou um grupo de 106 académicos franceses a denunciarem as derivas de Montagnier.»

Muitas vezes vi já a referida a palavra deriva com sentido idêntico, mas no Dicionário da Porto Editora e noutras consultas que fiz não aparece qualquer referência que se adapte.

Resposta:

O uso em questão é recente, ocorre em sentido figurado e está correto.

O significado de deriva que o consulente menciona tem registo na versão digital do dicionário da Porto Editora, na Infopédia, onde se apresentam duas aceções, em sentido figurado (extensão semântica):

«6. figurado movimento por meio do qual algo ou alguém se afasta do seu curso normal; 7. figurado evolução em determinada direção (geralmente considerada negativa).»

Trata-se de aceções recentemente dicionarizadas, como se pode confirmar pelo blogue Linguagista, de Helder Guégués, que em 14/10/2020, assinalou a falta de tais usos no dicionário da Porto Editora para depois, num comentário de 15/10/2020, dar conta do seu registo. Noutros dicionários, não se encontram as referidas aceções (ver dicionário da Academia da Ciências de Lisboa e, no momento em que escreve esta resposta, o dicionário digital da Priberam).

No Corpus do Português de Mark Davies, não se detetam ocorrências de deriva com este sentido na secção histórica, mas na secção de textos recentes encontram-se abonações – como acontece com a seguinte:

(1) «Título ainda provisório, [o filme] conta [...] a história de B...