Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Tenho o hábito de me referir aos naturais/habitantes de Vila Real (de Trás-os-Montes) como sendo "vilarealenses". No entanto, o Dicionário de Gentílicos e Topónimos do Portal da Língua Portuguesa apenas identifica vila-realense como o gentílico daquela cidade.

Tendo em conta que existem várias entidades públicas e privadas que usam a palavra "vilarealense" para as suas designações (até houve, em tempos idos, um jornal chamado O Vilarealense), gostaria de perceber se o seu uso é correto no contexto de identificar um natural/habitante de Vila Real.

Obrigado.

Resposta:

A forma "vilarealense" está de facto errada.

Com efeito, a forma que se regista há mais de 80 anos é vila-realense, conforme se pode confirmar pelo registo da palavra no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa que a Academia das Ciências de Lisboa publicou em 1940.

Mesmo que, em teoria, se pense que o gentílico não tem hífen e se escreve como uma única palavra gráfica, seria de esperar "vilarrealense", com dois rr, de maneira a representar a pronúncia do r forte com que começa a palavra real. Mesmo assim, é de notar que os gentílicos e nomes pátrios derivados de topónimos formados por nome e adjetivo (ou adjetivo e nome) se escrevem geralmente com hífen:

Monte Real (Leiria) > monte-realense

Vila Verde (Braga) > vila-verdense1

Nova Iorque > nova-iorquino;

Cabo Verde > cabo-verdiano;

Costa Rica > costa-riquenho

Serra Leoa > serra-leonês

Mas há exceções, como é o caso de neozelandês, de Nova Zelândia, visto que neo- funciona como prefixo.

 

1 No entanto, existe uma publicação em que o gentílico se escreve sem hífen, como uma única palavra gráfica: O Vilaverdense. Do ponto de vista ortográfico, não é forma correta, mas acontece que esta, como outras, pertence a um tipo de grafias regionalmente muito arraigadas, a ponto de naturais e residentes suporem que são as...

Pergunta:

Qual das seguintes frases é linguisticamente consagrada:

a) Corta-se chapa à medida;

b) Cortam-se chapas à medida;

c) Corta-se chapas sob medida;

d) Cortam-se chapas sob medida.

Resposta:

Todas são possíveis, mas as mais correntes – pelo menos, em Portugal – incluem a expressão «por medida», com a preposição por.

Deixando de lado a questão da opção entre «corta-se chapas» e «cortam-se chapas», já anteriormente esclarecida1, refira-se que «à medida» e «sob medida» são expressões corretas, embora a primeira não tenha o caráter fixo que tem a segunda, que se regista, por exemplo, no Dicionário Houaiss, como subentrada de medida:

«sob medida 1 cortado e confeccionado estritamente de acordo com as medidas do corpo do cliente (diz-se de vestimenta, chapéu, calçado etc.)
Ex.: "roupa sob medida", "sapatos sob medida"; 2 Derivação: sentido figurado, por extensão de sentido. perfeitamente apropriado (p.ex., como solução).»

Note-se, porém, que em Portugal, a forma desta locução é por medida, que ocorre não só numa expressão referida à confeção de vestuário como «fato/roupa por medida»2  mas também noutras expressões, conforme atesta o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa (em subentrada a medida):

«por medida, locução adverbial, que é concebido ou feito tendo em conta as dimensões, o espaço: O alfaiate fez-lhe dois fatos por medida. Móvel por medida.»

 

1 Ambas estão corretas, embora sejam estruturas que têm análises diferentes, conforme já se explicou em "Vende-se ou vendem-se? II".

2 No Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintáctico da Língua Portuguesa, de Énio Ramalho, regista-se a expressão «fato por...

Pergunta:

Qual a diferença entre estrutural e estruturante?

Resposta:

Muito sinteticamente, pode dizer-se que estrutural ocorre no sentido de «(aquilo que é) relativo a uma estrutura» (significado relacional), enquanto estruturante se usa na aceção de «que dá estrutura, que determina uma estrutura» (sentido agentivo ou causativo).

Este contraste pode ser confirmado pela consulta de vários dicionários – por exemplo, do Dicionário Houaiss, onde estrutural tem o significado básico de «relativo a uma estrutura qualquer» e estruturante, o de se aplicar àquilo «que favorece ou determina a estruturação».

Mesmo assim, convém assinalar que os dois adjetivos podem chegar a ser sinónimos, pois podem ocorrer ambos na aceção de «essencial, fundamental» (cf. dicionário da Infopédia).

Pergunta:

Por que se diz a expressão «boa esperança»? Dessa forma, como «Nossa Senhora da Boa Esperança», «fazenda Boa Esperança», etc.?

O uso do adjetivo se dá por ênfase, já que se espera que toda esperança seja boa, sendo estranho ter-se uma «má esperança»?

Muito obrigado, desde já.

Resposta:

Será preciso ir à história do português, quando esperança podia assumir um valor mais neutro, no sentido de «expetativa» ou «perspetiva», conforme se pode depreender dos seguintes exemplos, um quinhentista e outro seiscentista:

(1) «E entre algũas cousas que o Catual fez, de que Vasco da Gama teve dele boa esperança pera seus negócios, foi mandar a este Monçaide que se não apartasse dele [...]» (João de Barros, Décadas da Ásia. Década Primeira, Livros I-X in Corpus do Português).

(2) «O nosso correio pode chegar de amanhã por diante, e entretanto nos tem pendentes com pouco alvoroço; porque o passado não dava premissas de alguma boa esperança, sendo perdida a de S. A. se querer coroar» (Padre António Vieira, Cartas, idem).

É de notar igualmente que a expressão «boa esperança» se fixou na toponímia, como bem ilustra o conhecidíssimo caso de «cabo da Boa Esperança», que remontará à segunda metade do século XV, conforme relata o já citado João de Barros (Décadas, I, III, citado por José Pedro Machado, Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, 2003, s. v. Boa Esperança), ao referir-se ao episódio da navegação de Bartolomeu Dias até ao extremo sul do continente africano em 1488:

«Ao quall (cabo) Bartholomeu Diaz e os da sua companhia per causa dos perigos e tormentas que e...

Pergunta:

«Tem que ter tinta na caneta.»

Este ditado vem de onde?

Resposta:

É uma expressão que parece bastante recente e que encontra uma versão mais completa em «não basta ter caneta, tem de ter caneta» (ou numa versão mais popular «tem que ter caneta»), como sugere o seguinte exemplo:

(1) «A função dele é criar uma base governista. E, para criar a base governista, não basta lábia, tem que ter caneta. Não basta ter caneta, tem que ter tinta na caneta.» ("Um projeto para 20 anos", Crusoé, 27/09/2019)

Pelo contexto, depreende-se que a frase feita – um aforismo, isto é, uma frase curta, que encerra uma reflexão genérica com alcance prático ou moral – encerra uma imagem do exercício do poder, em que «caneta» funciona como metonímia do ato de assinar decretos, ou seja, como instrumento que inscreve atos de autoridade. A expressão pode, portanto, ser entendida como uma advertência a quem tem de saber encontrar meios para alcançar a sua ambição. O dito parece, portanto, próximo de «não se fazem omeletes sem ovos», literalmente equivalente a «é impossível produzir sem matéria-prima» (Madeira Grilo, Dicionário de Provérbios, 2009) ou, mais prosaicamente, «as coisas não nascem do nada».