Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

A propósito da pergunta publicada 19/04/2022 [sobre a grafia de dele, referido a Deus], não seria mais simples, e certamente mais elegante, simplesmente transferir o destaque em maiúscula para a letra inicial, suprimindo o apóstrofo?

«Em Deus cremos, e Nele recai toda a nossa esperança.»

Obrigado.

Resposta:

No contexto da atual norma ortográfica, não parece haver preceito claro quanto a essa possibilidade mais «elegante» – a de grafar em maiúscula a letra correspondente à preposição.

O que de facto se prevê – conforme o preceituado são duas situações:

a) a não contração da preposição com o pronome: «em Ele»;

b) a contração, mas escrita com a letra inicial da preposição seguida de um apóstrofo  e de um pronome com incial maiúscula.

Obviamente que, no caso de contigo e consigo reflexo, não se aceitam formas como " conTigo" ou "conSigo". Quanto à possibildiade de escrever convosco com maiúscula, também não parece concretizar-se, quando se leem documentos relacionados com matéria religiosa – por exemplo:

(1) «Convosco, Senhor, seremos provados; mas não turvados. E, seja qual for a tristeza que habite em nós, sentiremos o dever de esperar, porque convosco a cruz desagua na ressurreição [...]» ("Homilia do Papa Francisco na vigília pascal", Ecclesia, 11/04/2020).

Em (1), convosco ocorre com maiúscula inicial no começo de frase, o que não é relevante para daí se inferir a generalização a todas as formas dessa forma pronominal. Na verdade, na frase logo a seguir, ocorre convosco com minúscula inicial e, portanto, a sugerir que nas formas em que se associam preposições e pronomes não é hábito escrever com maiúscula a letra inicial correspondente ao morfema preposicional.

Pergunta:

Por que o i e o j possuem pinguinhos?

Muitíssimo obrigado.

Resposta:

Sobre o popularmente chamado "pingo" ou "pinguinho" (em Portugal, "pintinha") sobre o i e o j, aceita-se que este ponto sobrescrito surgiu no contexto da escrita cursiva para distinguir esta de outras letras. É o que se pode ler, por exemplo, na versão em linha da Enciclopédia Britânica:

«A letra minúscula i é somente uma forma mais curta da maiúscula. O ponto aparece pela primeira vez em manuscritos datados por volta do século XI e era usado para distinguir a letra e ajudar na sua leitura em palavras em que o i estava na proximidade de letras como n ou m (por exemplo, inimicis). O ponto tomava frequentemente a forma de um traço. Nos manuscritos medievais tornou-se habitual distinguir um i inicial ou destacado alongando-o abaixo da linha, daqui decorrendo a diferenciação entre i e j. A letra inicial, quase sempre mais comprida, tinha muitas vezes o valor de consonante, o que levou j a representar uma consoante, e i, a vogal. Até ao século XVII, considerava-se que as duas formas não eram letras diferentes.»1

 

1 Tradução livre do texto inglês: «The minuscule letter is merely a shortened form of the majuscule. The dot first appears in manuscripts of about the 11th century and was used to distinguish the letter and assist reading in words in which it was in close proximity to letters such as n or m (inimicis, for example). The dot frequently took the form of a dash. It became the custom in medieval manuscripts to distinguish an initial or otherwise prominent i by continuing it below the line, and it was from this habit that the differentiatio...

Pergunta:

Em Portugal, é geral o evitar-se o hiato «a água» com "a iágua", ou trata-se dum uso dialetal?

Muitíssimo reconhecido ao vosso trabalho!

Resposta:

É um uso dialetal de Portugal, sobretudo das regiões centro-norte (Beiras) e norte (Minho e Trás-os-Montes). Trata-se de um fenómeno de epêntese (inserção intervocálica), para desfazer o hiato entre dois aa, que são vogais centrais. Na comunicação informal, é bastante corrente, mas, formalmente, tende a ser evitado.

Sobre a inserção da vogal [i] no contexto em questão, transcreve-se da Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, 2013-2020, pp. 92/93) a seguinte passagem:

«A[os] traços fonéticos [diferenciadores dos dialetos de Portugal] propostos por L[indley] Cintra pode acrecentar-se um outro que [...] também configura a divisão do país apenas em duas áreas e também corresponde ao sentimento que os falantes têm da pertença a um Norte ou a um Sul linguístico, ou seja, quem o ostenta é do Norte, quem não o apresenta é do Sul, ou, mais propriamente, quem o ostenta indubitavelmente não é do Sul. Trata-se de um traço de fonética sintática que consiste, usando também um registo coloquial, na "pronúncia a iágua para a água", ou seja, como o exemplo (1) mostra, na inserção de uma semivogal para desfazer o hiato existente entre duas vogais centrais, a primeira átona [ɐ] (1a,b) ou tónica [á] (1c,d) e a segunda tónica [á], pertencentes a vocábulos diferentes. Trata-se da oposição entre a realização com semivogal própria do Norte e do centro e a realização sem inserção de semivogal, própria do português-padrão e do Sul.

(1) a. [

Pergunta:

Existe alguma diferença no significado de provocativo, provocatório e provocante?

Grata

Resposta:

A consulta de alguns dicionários gerais – por exemplo, o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa ou o Dicionário Priberam – pode levar a pensar que provocativo, provocatório e provocante são sinónimos e mutuamente substituíveis. Contudo, o exame mais atento de outros dicionários e de um corpus textual revela diferenças entre os três adjetivos.

Provocativo e provocatório são sinónimos quase exatos, uma vez que ambos se aplicam àquilo «que contém provocação» (Dicionário Houaiss). Contudo, provocante, que igualmente se interpreta nesse sentido, ocorre correntemente com conotação sexual, relativo a quem «incita a um relacionamento sexual» e que é «tentador, convidativo, atraente» (ibidem). O Corpus do Português (CP) faculta exemplos de provocante usados nesta aceção:

(1) «Fora precisamente naquela mesma cidade, que agora a esperava em festa, invejando-a, imitando-a, que Quirino a conhecera, a bem dizer há dois dias, quando ela passeava no jardim com uns sujeitos viciados e endinheirados. Não se sabia donde viera. As vezes acompanhava-a uma velhota mirrada, vestida de luto, de olhos mansos, parecendo pedir desculpa a toda a gente de ir ali com uma rapariga bela e provocante» (Fernando Namora, Minas de San Francisco, 1946).

Acrescente-se a este conjunto a forma provocador, que se emprega como adjetivo nas aceções ...

Pergunta:

Agradeço antes de mais o tempo dispendido para avaliar e responder às minhas questões.

Sei que a aférese é uma figura de estilo/linguagem que consiste na queda/retirada de um fonema no início de um vocábulo (ex. ainda – inda) e que ao mesmo tempo existe um outro recurso estilistico, a prótese que consiste no contrário, ou seja, no acrescento de um fonema no incío de uma palavra (ex. levantar – alevantar).

A minha primeira questão é a seguinte: ao depararmo-nos com determinado vocábulo, como sabemos se se trata de uma prótese ou de uma aférese?

Por ex.: arrebentou e rebentou.

Pelo que entendo, antes de escolhermos a figura de estilo apropriada, temos de decidir qual a palavra de origem, é isso? Mas isso nem sempre me parece evidente... Por exemplo há três ou quatro gerações (e ainda em várias zonas do norte de Portugal, por exemplo) ainda se diz arrebentou ou inda. No primeiro caso, trata-se de uma prótese porque partimos de rebentou, e no segundo, de aférese, porque temos em conta que a palavra "correta" é ainda – ou esse raciocínio é demasiado frágil?

Além disso, torna-se difícil de decidir quem fala/escreve bem ou menos bem. Tenho a ideia de que a lingua, sendo um produto social, mesmo com esquematizações e normas lexicais/sintáticas/etc. constitui um fenómeno humano muito dinâmico e permeável ao meio envolvente, o que dificulta essa mesma sistematização do bem falar/escrever.

No que nos podemos basear para essa questão das figuras de estilo? Na maioria dos falantes? Do país/zona de origem de quem proferiu/escreveu determinado vocábulo/frase?

Muito obrigado pela ajuda.

Resposta:

Agradecendo ao consulente o contacto e as considerações enviadas, convém começar por esclarecer que os conceitos de aférese e prótese são matéria da linguística, mais concretamente da fonética ou da fonologia, e não da estilística. Não se trata, portanto de figuras de estilo, mas, sim, de fenómenos fonéticos ou fonológicos (ver, por exemplo, "fenómenos fonológicos" no Dicionário Terminológico). Mas esta clarificação não invalida as questões levantadas, que são bastantes pertinentes e não têm uma resposta óbvia.

Assim, existem dois critérios – não infalíveis – para saber a relação cronológica entre duas formas:

– a etimologia, tendo em conta sobretudo o património de origem latina, porque daí provém grande parte do léxico português que corresponde a categorias mais básicas;

– e, em complemento, as atestações das palavras que se recolhem nos documentos escritos em português a partir a Idade Média.

Partindo destes critérios, comenta-se a seguir cada caso:

– Supõe-se que ainda precede inda, porque os documentos do século XIII apresentam a forma com a- inicial. Contudo, o a- parece não ter por enquanto explicação clara (segundo o Dicionário Houaiss) e, portanto, não terá sido impossível que, já em tempos medievais, inda concorresse com ainda. Na língua padrão, que é sempre resultado de uma seleção nem sempre de acordo com a sequência histórica (diacronia) dos factos linguísticos, é ainda a forma correta, considerando-se inda forma popular.

– Quanto a rebentar, aceita-se (embora com dúvidas) que o verbo procede do latim vulgar *repentare (o asterisco indica que é forma hipotética, reconstruída), verbo com que se relaciona repente, palavra co...