Filipe Carvalho - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Filipe Carvalho
Filipe Carvalho
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Mestre em Teoria da Literatura (2003) e licenciado em Estudos Portugueses (1993). Professor de língua portuguesa, latina, francesa e inglesa em várias escolas oficiais, profissionais e particulares dos ensinos básico, secundário e universitário. Formador de Formadores (1994), organizou e ministrou vários cursos, tanto em regime presencial, como semipresencial (B-learning) e à distância (E-learning). Supervisor de formação e responsável por plataforma contendo 80 cursos profissionais.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Tem-se ouvido e lido com alguma frequência o termo «faixa de rodagem» e «via de rodagem», quando se fazem referências à circulação automóvel numa autoestrada, por exemplo. Na minha perceção linguística, talvez até influenciado pela sonoridade, costumo dizer que «a autoestrada Lisboa-Porto é uma via de acesso, com quatro faixas de rodagem, sendo duas em cada sentido». Logo, uso o termo «faixa de rodagem».

Assim, e agradecendo desde já, solicito a vossa ajuda de forma a perceber se se deve dizer «faixa de rodagem» ou «via de rodagem».

Resposta:

Deverá dizer: «A autoestrada tem duas faixas de rodagem em diferentes sentidos, tendo, cada uma, duas vias de trânsito.»

Para explicar a diferença, talvez seja interessante começar por elucidar sobre o que é a via pública. Esta é uma via de comunicação terrestre que tem como objetivo a circulação de veículos, peões ou animais, segundo as normas do Código da Estrada

Fazendo parte da via pública, temos a faixa de rodagem, que se destina unicamente à circulação de veículos. A via de trânsito faz parte da faixa de rodagem, tratando-se de uma zona longitudinal por onde circula uma fila única de veículos*. 

 

* Para um melhor aprofundamento destas questões consulte-se a página Bom Condutor.

ou

http://transitoesinalizacao.omeuforum.net/t278-diferencas-faixa-de-rodagem-via-de-transito-sentido-de-transito-eixo-faixa-rodagem

Pergunta:

Gostaria de saber a diferença entre as seguintes expressões: 1. «Estou a caminho à escola.» 2. «Estou em direção à escola.» 3. «Estou a ir à escola.»

Resposta:

Relativamente à primeira frase, a norma aconselha a locução «a caminho de», pelo que deverá ser registado «Estou a caminho da escola.» Significa que alguém se dirige para a escola, a pé ou em qualquer transporte.O verbo caminhar  rege a preposição para*, sendo, assim, correto dizer-se: «caminhar para a escola». Porém, dada a locução utilizada e a especificidade da expressão, deve registar-se como em cima foi recomendado. A construção «A caminho à» não é recomendada, apesar de a preposição a poder ter valor de movimento rumo a alguma coisa ou pessoa**. Utiliza-se mais para expressar aproximação em relação a uma entidade, mas não neste contexto.  

A frase «Estou em direção à escola» significa que alguém se dirige na direção da escola, independentemente de ser esse o seu destino, ou não. A locução obedece às regras de regência.

A frase «Estou a ir à escola» pressupõe a ideia do que está a ocorrer naquele momento [alguém está a caminhar ou a viajar rumo à escola] ou de frequência com que alguém vai à entidade de ensino. Por exemplo, a frase: «No período passado, faltava muito à escola. Agora, estou a ir à escola com muito mais frequência» é elucidativa. 

A expressão estar a + verbo no infinitivo é reveladora de uma construção perifrástica. Nela está implícita a ideia de continuidade, prolongamento. A ida à escola prolonga-se no tempo. 

 

*

Pergunta:

Tenho algumas dúvidas relativas a preposições e maiúsculas. Será que me podem ajudar?

Diz-se «Desgastado com» ou «Desgastado por»? «Tem por tema» ou «Tem como tema»? «Aluna do Mestrado em Design» ou «Aluna do mestrado em Design»? Depende do Acordo Ortográfico?

Resposta:

Relativamente às expressões «Desgastado com» e «Desgastado por», ambas estão corretas, dependendo do contexto em que estejam inseridas.

Tenhamos, por exemplo, as seguintes frases:

  • «Estou desgastado com as atitudes dela.»
  • «Estou desgastado pelas [por + as] atitudes dela.»

Estas duas frases apontam para a causa do desgaste. São as atitudes dela que dão origem ou são a causa do desgaste de quem pronuncia estas frases.

A preposição com estabelece uma relação de causa [entre outras relações, como companhia, modo, instrumento, quantidade indeterminada], assim como a preposição por [para além de modo, meio e tempo] e, por este motivo, pode concluir-se que ambas as expressões se podem utilizar, baseando-se na ideia essencial de que «por causa das atitudes dela, estou desgastado». 

No que concerne às expressões: «Tem por tema» e «Tem como tema», são também equivalentes. Vejamos a seguinte frase exemplificativa:

    • «O texto tem como tema A Guerra Civil de Espanha.»

Significa que há uma comparação implícita entre o tema do texto e os acontecimentos referentes à Guerra Civil de Espanha. Ou seja, são os mesmos que são referidos. A conjunção como contribui para o estabelecimento dessa comparação. O tema inerente ao texto está em conformidade com o que ocorreu...

Pergunta:

Não tenho muito clara a razão da colocação dos indefinidos na oração. Quando deve utilizar-se «todo o leite» e «o leite todo»? São corretas as duas estruturas?

Resposta:

É mais apropriado denominar todo nas expressões «todo o leite» e «o leite todo» como um adjetivo, uma vez que este termo está associado ao substantivo para o determinar, não possuindo uma característica indefinida. Por outro lado, parece irrelevante, neste caso, a troca de posição deste termo para interpretar o significado da expressão.

 

Tenha-se em conta as seguintes frases: 

  • «Todo o leite que estava na garrafa foi desperdiçado!»
  • «O leite todo que estava na garrafa foi desperdiçado!»

As duas frases pretendem dizer a mesma coisa: o leite que se encontrava dentro da garrafa foi desperdiçado [por exemplo, porque foi derramado no chão], não sobrando uma única gota. 

No entanto, há adjetivos que, quando trocam de lugar com os substantivos, passam a ter um significado diferente. Por exemplo, nas frases:

 

  • «Ele é um grande homem!» [Um homem que se destacou pela sua ação]
  • «Ele é um homem grande.» [Um homem de grande estatura]
  • «És uma menina linda!» [Menina que se destaca pela sua beleza]
  • «És uma linda menina, fizeste os trabalhos de casa!» [Menina que se destaca pelo seu bom comportamento e atitudes]

Esta situação não é regra geral, só acontece em alguns casos. A regra geral é o substantivo vir seguido do adjetivo, existindo exceções: os superlativos relativos o maior, o menor, o pior, o melhor, etc., alguns adjetivos monossilábicos, como bom...

Pergunta:

Está correto aceitar que comida deriva, por processo não afixal, de comer? Não se trata aqui de um erro da editora? Algumas redefinições gramaticais também me intrigam.

Dada a explicação de uma editora, no processo não afixal, em que ensina a retirar simultaneamente a vogal temática a e o sufixo r à forma verbal trocar, por exemplo, e depois acrescentar a vogal o para construir troco, não estamos a afixar novamente o sufixo o? Isto não é mais confuso para um aluno e, afinal, não se trata de um processo de afixação?

E já agora, porquê a terminologia afixação em vez de afixal, se se opõe a não afixal? Para mim, faz sentido, sim, o processo da derivação regressiva: trocar > troca, em que apenas se retira o sufixo do infinitivo r.

Obrigado pela vossa paciência e tempo despendido.

Resposta:

Concordamos quando o consulente afirma que comida não deriva por processo não afixal do verbo comer, mas pode ser considerado como um caso de derivação por sufixação, um exemplo de derivados de verbos, como acolher > acolhida ou partir > partida.

A questão concernente à formação de palavras é por si só um «terreno pantanoso» quando se verifica o que é apresentado em muitas gramáticas, principalmente devido à falta de informação que leva professores e alunos à dúvida. Apesar de parecer uma questão gramatical simples, é mais complexa do que se pode julgar.

A chamada derivação não afixal (no passado apelidada de derivação regressiva) levanta um problema de difícil solução: são os substantivos que derivam dos verbos ou estes é que existiam antes daqueles? Seria necessário grande conhecimento da História da Língua para se poder responder com propriedade a esta questão. O que acontece é que grande parte das gramáticas parte do princípio, por vezes errado, de que são os nomes que derivam dos verbos.

A regra que apresentou não corresponde à realidade, pois, como ilustrou, se se limitasse a suprimir o r final do infinitivo e a vogal temática, muitos exemplos dados nas gramáticas não corresponderiam à nota teórica explicativa [quando existe] que diz respeito a esta questão. Assim, seria impossível justificar que canto resulta da derivação não afixal do verbo cantar ou grito de gritar.