Gonçalo Neves - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Gonçalo Neves
Gonçalo Neves
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Tradutor de espanhol, francês, inglês, italiano e latim; especialista em Interlinguística, com obra publicada (poesia, contos, estudos linguísticos) em três línguas planeadas (ido, esperanto, interlíngua) em várias revistas estrangeiras; foi professor de Espanhol (curso de tradução) e Português para Estrangeiros no Instituto Espanhol de Línguas; trabalhou como lexicógrafo na Texto Editores; licenciado em fitopatologia pela Universidade Técnica de Lisboa.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

[Mais outra dúvida sobre] como aportuguesar determinados nomes greco-latinos [...]:

* Horreum – pelo que pude descobrir sobre a trajetória desse termo latino para celeiro, ele preservou-se como “hórreo” para referir-se a celeiros do norte da península Ibérica e tem paralelo com o espigueiro português. Numa pesquisa preliminar, todas as referências encontradas para “hórreo”, que foi a grafia mais provável num possível aportuguesamento, remeteram-se aos celeiros modernos, sem nenhum paralelo aos celeiros romanos. Porém, recentemente descobri uma entrada num dicionário em espanhol (Ocampo, Estela. Diccionario de términos artísticos y arqueológicos: Icaria Editorial, 1992. p. 117) no qual é feita uma correlação entre os edifícios romanos e a forma atual. Dai que também fico na dúvida, é possível a transposição para o português do termo?

Resposta:

No que toca a horreum, diz Forcellini, no volume 2 (p. 678) do Lexicon totius latinitatis, que Horreum est locus, in quo segetes post messem reponuntur («O horreum é o local onde se guardam os cereais após a ceifa»). No entanto, Forcellini tem o cuidado de, mais adiante, e citando os clássicos, precisar que o horreum tinha outro tipo de utilizações. Refere, por exemplo, os que se destinavam ad vina condenda («à maturação do vinho») e os que serviam ad oleas servandas («para guardar a azeitona»). Neste último caso, serviam-se deles quando a colheita da azeitona era tão abundante (immodica multitudo olearum), que superava a capacidade dos lagares (torculariorum vincit laborem). Eram suspensos (horrea pensilia), à semelhança dos nossos espigueiros, para reduzir a humidade (quo sicciora sint). Por todos estes motivos, creio que não é curial traduzir‑se horreum indiscriminadamente por «celeiro». O único aportuguesamento plausível será “hórreo”. Como alternativa, poderá recorrer-se ao termo latino em itálico: horreum, com o plural horrea. Creio que é preferível esta segunda solução.

Pergunta:

Venho por meio desta consulta tentar sanar, novamente, dúvidas de como aportuguesar determinados nomes greco-latinos:

* Stoa – nenhum dos dicionários com visualização online possui qualquer entrada para esse termo grego para as colunatas/pórticos e fica difícil saber, por isso mesmo, se seu uso é realmente cabível da forma como está ou se é possível adaptá-lo de alguma forma. As parcas fontes que eu achei ao utilizar o aportuguesamento mais óbvio "Estoá" ou "Estoa" referem-se à escola de Zenão de Cítio construída na ágora de Atenas.

Resposta:

O vocábulo στοά (stoá) é encontradiço entre os autores gregos (por exemplo, em Platão e Plutarco), e ainda hoje se utiliza em grego moderno com o significado de «pórtico». Não vem abonado nos habituais dicionários de latinidade clássica, mas figura no colossal Lexicon totius latinitatis, da autoria do filólogo italiano Egidio Forcellini (1688-1768), em cujo volume 4a, no respetivo verbete (p. 497), se pode ler que stoa Græce, Latine porticus diciturstoa é como se chama em grego ao que chamamos porticus em latim»). Mais informa este dicionário que é deste vocábulo que provém o nome dos filósofos estoicos: Mos erat apud philosophos, ut in una porticu congregarentur et ibi disputarent et inde ab stoa porticu Stoici dicti sunt («Os filósofos tinham por hábito reunir-se num pórtico, onde se embrenhavam nas suas discussões, e é de stoa, que quer dizer “pórtico”, que lhes vem o nome de estoicos».

Se στοά quer dizer simplesmente «pórtico», não vejo grande necessidade de aportuguesar este vocábulo, quando já temos um termo equivalente na nossa língua. Seja como for, se houver premência de aportuguesar, creio que a única opção plausível será “estoa”, como, aliás, já fazem os espanhóis nesta página e nestoutra da Wikipédia, embora o vocábulo ainda não esteja registado no dicionário da

Pergunta:

Atendendo ao texto seguinte, agradeço os vossos comentários sobre o acerto/erro das expressões círculo vicioso/ciclo vicioso.

Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora (2006)

Círculo (geometria) =< Porção de plano limitada por uma circunferência.

Circunferência (geometria) =< Limite exterior do círculo; Curva plana fechada cujos pontos são equidistantes do centro;

Ciclo (física) =< Conjunto de transformações por que pode passar um sistema material que, partindo de um dado estado inicial, volta ao mesmo estado.

Vicioso =< Que tem vícios.

Vício =< Defeito pelo qual uma pessoa ou uma coisa se afasta do tipo considerado normal, ficando inapto a cumprir um determinado fim.

Notas

=====

1) Um círculo é um espaço geométrico num plano (a duas dimensões, portanto).

2) Uma circunferência é uma linha imaginária que delimita o círculo.

3) Um ciclo é um conjunto finito de acções, acontecimentos ou transformações, passíveis de repetição (e repetidas dentro do ciclo pela mesma ordem inicial).

4) Um vício é uma repetição não intencional, não natural, não programada, de acções, acontecimentos ou transformações que teimam em permanecer ao longo do tempo.

5) Um ciclo vicioso é a repetição não intencional, não natural e não programada (mas viciada) de um ciclo.

6) Um ciclo não tem nada a ver com um c...

Resposta:

O nosso vocábulo ciclo, que data de 1712, chegou-nos do grego κύκλος (kýklos) por via do latim cyclus. Ora, o significado primordial de kýklos em grego era precisamente «círculo», embora apresentasse outras aceções, entre as quais a de «ciclo». Ainda hoje, em grego moderno, não se distingue «círculo» de «ciclo», pois ambos se dizem kýklos, pelo que aos atuais descendentes do povo helénico não lhes assalta a dúvida que importuna o nosso consulente... e não só. Assim, em grego, chamam φαύλος κύκλος (fávlos kýklos) ao nosso círculo vicioso, que muitos persistem em chamar ciclo, já veremos porquê.

Apesar de estar abonado em dicionários, o vocábulo cyclus não teve grande circulação em latim, como se depreende, por exemplo, do facto de o Lexicon Recentis Latinitatis, publicado em 2004 no Vaticano, recorrer a uma miríade de termos para traduzir o italiano ciclo: orbita, motus cyclicus, motus circularis, motus orbicus, motus periodicus; orbis; cursus; periodicum alternamentum, vicissitudo; temporis portio, saeculum, spatium temporis; fabulae cyciclae, fabularum series, cyclus narrativus, fabularum sequentia, series et complexus fabularum. Ou seja, a pujança que este vocábulo evidencia nas línguas modernas, nas quais se reveste de matizes cada vez mais subtis e diferenciados, não corresponde de forma alguma ao papel secundário que desempenhava em latim. Para exprimir a natureza cíclica de determinado fenómeno, um latinista moderno servir-se-ia preferencialmente do vocábulo vicissitudo, à semelhança de Cícer...

Pergunta:

 No Império Bizantino havia dois tipos típicos de galés em uso, o dromon e o chelandion (também em latim chelandium). Admitindo os padrões de transcrição para o português, seria admissível dizer que ambos poderiam ser escritos "dromo" e "quelândio" (como "Achilles" para Aquiles)?

Resposta:

A galé a que os bizantinos chamavam δρόμων (drómon) não era desconhecida entre os escritores latinos, como se demonstra por este passo de Isidoro de Sevilha (Etym. XIX, I, 14): Longæ naves sunt quas dromones vocamus [...]. Dromo autem a decurrendo dictus; cursum enim Græci δρόμον vocant («Há navios compridos a que chamamos dromones [...]. O nome dromo vem de serem rápidos, porque em grego δρόμων quer dizer “corrida”»).

O substantivo masculino dromo/dromonis vem abonado na generalidade dos dicionários latinos. Se este vocábulo tivesse entrado regularmente em português, por via popular, teria dado “dromão”, com o plural “dromões”, tal como leo deu origem a leão, com o plural leões, mas esta forma não se encontra atestada. No século XIII, porém, Afonso X, o Sábio (1221-1284), rei de Castela e Leão e avô do nosso D. Dinis (1261-1325), escrevendo em galaico-português, versejava assim:

«mais tragerei un dormon,

e irei pela marinha

vendend’ azeit’ e farinha;»

Sobre o tal dormon diz Rodrigues Lapa (1897-1989), em Cantigas d’escarnho e de mal dizer (2.ª ed. Vigo: Editorial Galaxia, 1970, p. 36), tratar-se de «bar...

Pergunta:

Quem lê Ricardo Reis sabe da necessidade de se colocarem umas gotitas de óleo no mecanismo da reflexão semântica, antes mesmo de se pôr o motor a carburar! E pode ser que, pelo tubo de escape, lá se expilam quaisquer grãos de chumbo que perdurarão pesados, rolando incessantemente pelo asfalto... Estando eu, portanto, a passar os olhos por uma dessas venerandas ;) odes ricardinas – sem qualquer pretensão de análise linguística, diga-se de passagem –, eis que o sino toca e a igreja se enche, repleta! Transcrevo o excerto que me serviu de inspiração para as posteriores análises:

«Nem vã sperança nem, não menos vã, / Desesperança, Lídia, nos governa / A consumanda vida. // Só spera ou desespera quem conhece / que há-de sperar. Nós, no labento curso / Do ser, só ignoramos. [...]»

Nesta passagem, a latinidade de R. R. vem à tona por meio daquela recusa contundente em não se permitir o "bárbaro" uso da vogal protética e daquele partícipio presente «labento» que escapa aos verbetes de dicionário1. Mas onde a fineza de estilo mais transparece é mesmo no uso do gerundivo «consumanda». Do que me relembro, conjugam-se neste adjectivo verbal (a) quer um valor modal deôntico de obrigação, (b) quer um valor diatético passivo no futuro (será por isso que certos latinistas falam do gerundivo como sendo uma espécie de particípio futuro passivo...). Parece, contudo, que, segundo a interpretação que escolhamos, isso nos levará a cambiantes de sentido diferentes.

Aceitando (a), contraria-se de certa forma o i...

Resposta:

Aventava Santo Isidoro de Sevilha, na sua célebre enciclopédia, que o participium («particípio») tinha este nome por chamar a si (capere) partes do nome e do verbo, como se disséssemos particapium.2 Explicava ainda que o particípio vai buscar (vindicat sibi) ao nome os géneros e os casos, ao verbo, os tempos e significados, e a ambos, o número e a figura.3 O argumento etimológico não era novo, pois já Marco Valério Probo, gramático romano bastante anterior, da segunda metade do século I, oriundo de Beirute e contemporâneo do imperador Nero, expressara esta ideia praticamente pelas mesmas palavras.4 Temporalmente quase equidistante dos dois eruditos, acentuava Donato, um influente gramático latino do século IV, a natureza mista (nominal e verbal) do particípio, repetia o argumento etimológico5 e expunha que as formas legendus, legenda, legendum eram participia venientia a verbo passivo temporis futuri («particípios provenientes do verbo passivo no tempo futuro»).6

Hoje diríamos que se trata do gerundivo, ou seja, de um adjetivo verbal, de valor passivo, que se forma pela junção de ‑(e)ndus, ‑a, ‑um ao tema verbal e se declina como qualquer adjetivo da primeira classe, em todos os casos do singular e do plural, concordando sempre em género e número com o respetivo complemento, o qual, por seu lado, concorda com aquele em caso.

Os gramáticos normalmente ensinam que o gerundivo exprime uma ideia de dever, obrigação, necessidade ou conveniê...