Gonçalo Neves - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Gonçalo Neves
Gonçalo Neves
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Tradutor de espanhol, francês, inglês, italiano e latim; especialista em Interlinguística, com obra publicada (poesia, contos, estudos linguísticos) em três línguas planeadas (ido, esperanto, interlíngua) em várias revistas estrangeiras; foi professor de Espanhol (curso de tradução) e Português para Estrangeiros no Instituto Espanhol de Línguas; trabalhou como lexicógrafo na Texto Editores; licenciado em fitopatologia pela Universidade Técnica de Lisboa.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

O termo MELLITOR, ao que suponho de origem latina, significará «apicultor»? Existe um glossário em latim associado à actividade apícola?

Obrigado.

Resposta:

O termo mellitor não se encontra em nenhuma das obras dos vários autores clássicos que versaram sobre apicultura. São, aliás, muito escassos os trechos destes autores em que figura uma designação concreta para o tratador de abelhas. Conheço apenas dois exemplos:

O primeiro vem da pena de Marco Terêncio Varrão (116 a.C.–27 a.C.), que, no seu tratado Rerum rusticarum («A agricultura»), recorreu ao vocábulo mellarius escrevendo o seguinte (III, 16, 17):

Ad extremam, qua mellarii favum eximere possint, opercula imponunt («Colocam tampas na parte posterior, para os apicultores poderem retirar o favo»).

O segundo é da autoria do naturalista romano Plínio, o Velho (23–79), o qual, na sua monumental obra Naturalis Historia, lançou mão do termo apiarius da seguinte forma (XXI, 56):

Proventum enim sperant apiarii large florescente eo [thymo] («Os apicultores esperam, pois, obter farta colheita quando o tomilho floresce em abundância»).

Alguns dicionários referem igualmente o vocábulo mellifex («o que faz mel») traduzindo-o por «apicultor», com base numa única ocorrência na obra De re rustica («A agricultura»), da autoria de Columela (4–c. 70), onde se lê Ubicumque saltus sunt idonei mellifici (IX, 9, 8), um trecho cujo último termo (

A história da palavra <i>prémio</i> na atividade seguradora

Um consulente do Brasil – Rafael Blusky, de Salvador  – enviou ao Ciberdúvidas a seguinte pergunta:

«Gostaria de saber o motivo da prestação periódica a ser paga às companhias de seguro ser chamada de prêmio. Ao consultar o dicionário, aparentemente nenhum dos significados da palavra se assemelha ao que é usado desta forma, à exceção do que define o prêmio como tendo este sentido.»

Pergunta:

Por que motivo prelo se ouve vulgarmente pronunciado com e aberto, se, em latim, a vogal tónica era longa, legitimando, assim, a prolação com timbre fechado (ê)?

Grato de antemão.

Resposta:

O sistema vocálico do latim clássico era constituído por dez vogais: cinco longas (ā, ē, ī, ō, ū) e cinco breves (ă, ĕ, ĭ, ŏ, ŭ). A duração das vogais tinha valor fonológico, desempenhando uma função distintiva essencial na linguagem falada, como se pode verificar pelos seguintes pares:

mālum («maçã») / mălum («mal»)

vēnit («veio») / vĕnit («vem»)

dīco («digo») / dĭco («consagro»)

ōs («boca») / ŏs («osso»)

lūteus («amarelo») / lŭteus («de lama»)

Esta distinção da quantidade vocálica do latim perdeu-se durante o longo processo de formação das línguas românicas, com resultados diversos consoante as línguas que dele derivaram. No caso do português, podemos dizer que a quantidade vocálica do latim clássico foi substituída pela diferença de timbre entre as vogais médias do latim vulgar, a qual acabou por dar origem a uma oposição distintiva entre vogais médias abertas e vogais médias fechadas, ou seja, entre e aberto (/ɛ/) e e fechado (/e/), bem como entre o aberto (/ɔ/) e o fechado (/o/).

De acordo com as gramáticas históricas e com os manuais de filologia, a transformação das vogais e ditongos latinos operou-se da seguinte forma durante a passagem para o português:

ā, ă > a

ĕ, æ > é (aberto)

ē, œ, ĭ, > ê (fechado)

ī > /i/

ŏ > ó (aberto)

Pergunta:

Se fosse possível, gostaria de saber qual a tradução da expressão latina «ubique vincet», que era o lema do meu batalhão em África, mas sobre o qual não consigo obter resultados, mesmo tentando por vários tradutores disponíveis na Internet.

Os meus agradecimentos.

Resposta:

O advérbio latino ubique significa «em qualquer lugar», «em todo o lado», «em qualquer sítio», «seja onde for». Deriva do advérbio ubi («onde»), o qual, por seu lado, deu origem ao francês («onde») e a u, que em português arcaico se usava em vez de onde, como nesta conhecida cantiga de amigo do nosso rei D. Dinis. De ubique chegou-nos, por via do francês, o substantivo ubiquidade, que expressa precisamente o dom ou a faculdade de estar presente em todo o lado ao mesmo tempo (um atributo exclusivamente divino, como é compreensível), e daquele provém o adjetivo ubíquo, um sinónimo erudito de omnipresente, ou seja, «presente em todo o lado».

Quanto a vincet, trata-se da terceira pessoa do singular do futuro do indicativo do verbo vinco, vincis, vici, victum, vincere, que significa «vencer». A forma verbal vincet quer dizer, portanto, «vencerá». Sendo assim, ubique vincet significa literalmente «vencerá em qualquer lado». Tratando-se do lema de um batalhão, poderá traduzir-se livremente por «vencerá em qualquer campo (de batalha)».

Atenção à pronúncia de ubique: o segundo u não é mudo, pois soa como o u de equestre, e o e final é aberto, como em inclusive. O leitor interessado poderá ouvir aqui a pronúncia de ubique, advérbio que, neste caso, aparece integrado na curiosa expressão Omnia Omnibus Ubique («Tudo para ...

Pergunta:

 Macellum – este termo, em sua forma italianizada Macello, ainda é utilizado como consta no Dicionário Michaelis Português-Italiano para referir-se a mercados de víveres. Haja vista que a grafia italiana assemelha-se muito a uma possível forma lusófona, imagino que talvez se pudesse sugerir "Macelo"?

Resposta:

Macellum ou macellus designava um mercado onde se comercializavam vários produtos alimentares (carne, peixe, legumes, etc.). Diz o Lexicon totius latinitatis de Forcellini, no seu volume 3 (pág. 138), que macellum est locus, in quo obsonia venduntur («o macellum é um local onde vendem produtos alimentares»). Este léxico, aliás, aduz várias citações de autores clássicos que provam que, ao contrário do que se lê em certas obras, no macellum se vendia todo o género de produtos alimentares, e não apenas carne. Mais informa que o macellum resultou da concentração, no mesmo local, de antigos mercados especializados na venda de carne (forum boarium), peixe (forum piscarium), hortaliças (forum olitorium), etc.

A verdade é que, em latim tardio, este vocábulo, ao que tudo indica, veio a designar preferencialmente o local onde se vendia carne ou se abatiam as reses, como se denota pelos derivados existentes nas línguas neolatinas, como em italiano (macello, «matadouro») e romeno (măcelar, «talhante», derivado de macellarius). Ainda em romeno, de măcelar provém o verbo măcelări («massacrar»), e deste, o substantivo măcel («massacre, carnificina»). Em espanhol subsiste o vocábulo macelo («matadouro»), mas é pouco usado, e o que se diz é matadero, vocábulo formado internamente a partir do verbo matar, tal como em português.

O aportuguesamento deste vocábulo latino, por isso mesmo, torna-se problemático, devido à derivação de sentido ao longo dos séculos, tal como suce...