Sara Mourato - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Sara Mourato
Sara Mourato
44K

Licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre em Língua e Cultura Portuguesa – PLE/PL2. Com pós-graduação em Edição de Texto, trabalha na área da revisão de texto. Exerce funções como leitora no ISCTE.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Durante um debate entre parlamentares num canal de TV, vi uma deputada cumprimentar os participantes referindo-se aos telespectadores em casa com a expressão «aos que nos assistem».

Ora, dito assim, parece-me que que a senhora estará a dizer «aos que nos ajudam», e deveria ter dito «aos que nos veem/ouvem» em casa.

Em todo, porque tenho dúvidas na utilização deste verbo na construção frásica, solicito o vosso esclarecimento.

Melhores cumprimentos.

Resposta:

O Dicionário Eletrônico Houaiss atesta o verbo assistir com o significado de «ver e ouvir». Neste caso, o verbo é transitivo indireto, e infere-se, de acordo com o mesmo dicionário, que como complemento indireto se seleciona um nome [- humano]. Daí, a frase apresentada apelo consulente causar estranheza, uma vez que em «[boa noite] aos que nos assistem» temos um complemento indireto com um traço [+ humano], o que não é comum. Comum seria «[boa noite] aos que nos veem/ouvem» . No entanto, não se pode considerar que seja uma afirmação errada, é antes uma afirmação menos comum. 

Saliente-se ainda que, como se refere na questão, este verbo, está, também, atestado, entre outras aceções, como «acompanhar (enfermo, moribundo, etc.) para prestar-lhe socorro material ou moral», nesta aceção, pode ser transitivo direto e indireto; ou «prestar auxílio ou assistência a; ajudar, socorrer», como transitivo indireto (ibidem), e aqui sim, o complemento indireto tem um traço [+ humano].

Pergunta:

Acabo de ler, escrita por um autor muito bom, a seguinte frase: «Todas quanto abraçaram esta via foram bem-sucedidas».

A minha dúvida prende-se com o «quanto» invariável, que me soa mal. Admito, porém, que o erro seja meu.

Em suma: devemos escrever como acabo de referir ou antes «Todas quantas abraçaram [...]»?

Resposta:

Tal como o consulente sugere, a frase – «Todas quanto abraçaram esta via foram bem-sucedidas»   está incorreta. A forma correta tem de apresentar «quantas»: «Todas quantas abraçaram esta via foram bem-sucedidas». 

Acontece que o pronome relativo quanto, na frase em apreço, funciona como especificador de um nome implícito, e tem um antecedente – todas1 que expressa quantificação. Ora, nestes casos, o relativo quanto deve concordar em género e em número com o nome que específica e que está marcado pelo pronome indefinido todas:

1. «Todas quantas [pessoas] abraçaram esta via foram bem-sucedidas.»

Acrescente-se que quanto pode ter tudo como antecedente3 e, nesse caso, é invariável:

2. «Em tudo quanto abracei, fui bem-sucedido.»

Em suma, em (1) o pronome relativo quanto funciona como especificador de um nome implícito, e, neste caso, quanto é variável; em (2) quanto tem tudo como antecedente, e, assim, é invariável.

 

1 No tipo de contexto em questão, a atri...

Pergunta:

Atendendo às duas seguintes frases «O que você faz nos fins de semana?» e «Que tipo de coisa você faz nos fins de semana?», qual é explicação gramatical para na segunda frase o o ser omitido?

Obrigada, desde já, pela resposta.

Resposta:

Ao contrário do que pretende a consulente, não existe omissão do o na frases interrogativa «Que tipo de coisa você faz nos fins de semana?", por comparação com «O que você faz nos fins de semana?». Trata-se de duas questões semelhantes, mas introduzidas por pronomes interrogativos diferentes1.

Em «O que você faz nos fins de semana?», aparece o pronome substantivo interrogativo o que, que tem como finalidade «dar maior ênfase à pergunta, em lugar de que pronome substantivo»2.

Por outro lado, e«Que tipo de coisa você faz nos fins de semana?», ocorre o pronome adjetivo interrogativo que, semelhante a qual («qual tipo?»). Neste segundo caso, não há omissão do determinante o, pois ele não faz parte do uso de que como pronome adjetivo. Por outras palavras, não alternando o pronome adjetivo interrogativo que com a forma o que, não é possível *«o que tipo de coisa você faz?»2

 

Pergunta:

Hoje, na aula de Português, foi abordado o grau superlativo absoluto sintético. O professor deu algumas regras, exemplos e trabalhos para casa. Numa das flexões constava o adjetivo “cortês”.

Como não tinha a certeza da resposta, fiz uma pesquisa no dicionário Priberam e depois no blogue Língua Portuguesa e Literatura do Folcloreaté que encontrei a solução “cortesíssimo”.

A minha dúvida consiste no seguinte: com a terminação -ês aplica-se a regra geral e adiciona-se -íssimo?

Antecipadamente agradeço a ajuda prestada.

Resposta:

O grau superlativo absoluto sintético do adjetivo cortês é, como refere o consulente, cortesíssimo

Ao adjetivo cortês, agrega-se somente o sufixo -íssimo, marca do grau superlativo absoluto sintético1. Encontra-se confirmação deste procedimento num outro exemplo mais comum, o de português, que, no grau superlativo absoluto sintético, tem a forma portuguesíssimo1.

Importa referir que que o adjetivo em análise, cortês, é usado preferencialmente no grau normal ou no grau superlativo absoluto analítico: «ele é muito cortês». Daí talvez suscitar dúvidas quanto à sua forma no superlativo absoluto sintético.

 

1 Na Nova Gramática do Português Contemporâneo, (Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1984, pp. 259/259), de Celso Cunha e Lindley Cintra, o adjetivo cortês não se insere em nenhumas das exceções aí descritas – não termina em vogal (belo + -íssimo > belíssimo), nem em -z (capaz + -íssimo > capacíssimo), nem em -vel (amável + -íssimo > amabilíssimo), nem em vogal nasal (comum + -íssimo > comuníssimo), nem em ditongo -ão (vão + -íssimo > vaníssimo).

Pergunta:

Nem associa-se em geral ao significado «e não», como no exemplo «Não tenho peras nem maçãs».

No entanto, como se justifica o uso de nem na seguinte frase: «Viajar é bom, mas nem todos temos dinheiro para isso»?

Resposta:

De facto, na frase apresentada – «Viajar é bom, mas nem todos temos dinheiro para isso» –, não é possível substituir nem por não. Não se aceita, portanto, «"não todos" temos dinheiro»1.

Sobre a sequência «nem todos», como negação do quantificador universal todos, observa-se na Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, p. 482) que ela só ocorre em posição inicial de frase ou oração: «Nem todos temos dinheiro para isso»; «Viajar é bom, mas nem todos temos dinheiro para isso» (neste caso, nem todos figura logo após a conjunção mas). A gramática em referência acrescenta:

«[Um] constituinte de negação de universalidade com nem [nem todos, nem sempre] só pode surgir em posição não inicial numa oração se outro constituinte for topicalizado, como em o livro, nem todos os estudantes o tinham lido (no caso, o constituinte inicial o livro está deslocado para a posição inicial).

Trata-se de uma construção cuja  motivação nem a fonte consultada esclarece cabalmente nem outras gramáticas chegam a registar 2.

 

1 É, no entanto, possível ocorrer «não todos» como negação com escopo somente sobre o quantificador, antes de uma construção adversativa (geralmente marcada por mas): «Li livros de Eça de Queirós,