Sara Mourato - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Sara Mourato
Sara Mourato
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Licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre em Língua e Cultura Portuguesa – PLE/PL2. Com pós-graduação em Edição de Texto, trabalha na área da revisão de texto. Exerce funções como leitora no ISCTE.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Frente e fronte têm uma origem comum?

Muito obrigada.

Resposta:

De acordo com o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, e com o Dicionário Houaissfrente fronte tem origem no latim fronte-: «fronte, testa, rosto, semblante, cara».

Apesar da mesma origem, o substantivo frente – com registos desde o século XVIII, de acordo com o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa  chegou até nós pelo castelhano frente, forma mais tardia de fruente, também com origem no latim fronte-.

Já fronte é palavra patrimonial, pois chegou ao português por via direta do latim, com registos desde o século XIII (ibidem). 

Estes dois substantivos estão, atualmente, dicionarizados com significados próximos: fronte, nas aceções de «testa; cabeça; rosto; parte da frente de algo, dianteira»; frente, com os significados de «parte anterior, lado frontal; testa; rosto, face; frontaria, fachada». Como substantivos, portanto, são sinónimos, mas em locuções adverbiais e prepositivas, é quase sempre frente que ocorre: «em frente(de)», «à frente (de)», «para a frente (de)», «de frente». Contudo, a forma mais antiga, fronte, mantém-se, por exemplo, no advérbio defronte (de + fronte): «ela mora ali defronte» (Dicionário Houaiss).

Pergunta:

«Denominada de...» é errado?

Deve ser escrito, sem exceções, sem preposição?

Resposta:

De acordo com o Dicionário Gramatical de Verbos Portugueses (Texto Editora, 2007)1, ao verbo denominar, no sentido de «chamar», pode, realmente, associar-se um grupo preposicional introduzido pela preposição de e desempenhando a função de predicativo do complemento direto:

(1) «O armador denominou a nau de "Ulisses"».

No exemplo (1) temos uma frase na voz ativa em que a preposição de introduz o predicativo do complemento direto «de "Ulisses"».

No entanto, em vez de começar um predicativo do complemento direto, a preposição de pode introduzir um predicativo do sujeito no uso de denominar na voz passiva:

(2) «A nau foi denominada de "Ulisses" pelo armador.»

Note-se ainda que, na Nova Gramática do Português Contemporâneo, de Celso Cunha e Lindley Cintra, apesar de não se incluir denominar na lista de verbos presentes na secção «Regência verbal» (pág. 512), regista-se chamar, sinónimo do verbo em questão. Este caso valida o anteriormente exposto: se  chamar tem regência construída pela preposição de – «chamava-lhe sempre de miúdo» –, então, o mesmo ocorre com denominar.

 

1 O

Pergunta:

Sei que existem as locuções conjuncionais «antes que» e «depois que».

Pretendo saber se também é correto usar para o mesmo efeito as expressões «antes de que» e «depois de que» usando uma construção análoga à de «para além de que». Tinha para mim que era possível dizer «depois de que» mas não «antes de que». Achei no entanto um pouco arbitrário.

Procurei em várias gramáticas e não vi nada de conclusivo. Também só encontrei algumas referências tangenciais no Ciberdúvidas, que não me deram a certeza. Deste modo, decidi verificar a ocorrência das expressões no ReversoContext e encontrei centenas de ocorrências.

Essas expressões são de fato gramaticalmente aceitáveis?

Resposta:

Apesar de, por vezes, lermos ou ouvirmos as locuções «antes de que» e «depois de que», a verdade é que as mesmas não estão atestadas nos dicionários. 

O Dicionário da Língua Portuguesa Contemporanea, da Academia de ciências de Lisboa, e o Dicionário Houaiss atestam, sim, a locução «antes que»1, com o sentido de «em antecipação a alguma coisa», bem como a locução «depois que»2, com o sentido de «no período de tempo que segue determinado ato ou acontecimento». Também a Gramática de Português da Fundação Calouste Gulbenkian, atesta a mesma forma, isto é, sem a preposição de (Vol. II, pp. 1999/1996). Tudo isto indica que «antes de que» e «depois de que» surgem, erradamente, por analogia a «além de que», como refere o consulente. 

De ressaltar que no Corpus da Língua Portuguesa encontramos atestado «e depois de que servia resgatar a carta a dinheiro» (frase de Eça de Queirós em O Primo Basílio) o que poderia contradizer a teoria acima descrita. Contudo, na frase apresentada, «depois de que» é uma sequência que não forma uma locução.

 

Pergunta:

No contexto atual da pandemia covid-19 e respetivas campanhas de vacinação, generalizou-se nos media o recurso a frases como «o ministro foi inoculado com a vacina», o que me parece abusivo (é a vacina que é inoculada e não o recetor da mesma).

Gostaria de saber a vossa opinião a este respeito.

Obrigado.

Resposta:

De acordo com os dicionários Houaiss e o Dicionário Prático de Regência Verbal, verbo inocular, na área da medicina, refere-se à introdução de um agente de doença com finalidade preventiva, curativa ou experimental. o complemento direto deste verbo são, pois, nomes que denotam agentes de doenças, sendo  que o complemento oblíquo pessoas  pacientes deste tipo de ação. Nesta medida, tal como refere o consulente, deveria ser a vacina que é inoculada – «a vacina foi inoculada ao ministro» – , e não o ministro – «o ministro foi inoculado com a vacina»

Não se pode assumir, porém, que a estrutura apresentada na questão esteja errada. A verdade é que este verbo é semanticamente próximo do verbo injetar, que tem, também ele, um sentido semelhante ao de inocular. Isto é, introduz-se com seringa uma substância a alguém, portanto, «injeta-se a vacina ao João». Contudo, é igualmente recorrente encontrarmos estruturas como «injetou-se o doente com insulina», que, de resto, se encontra atestado em dicionários como o Houaiss ou o ...

Pergunta:

Qual a palavra que se segue a seguir a pejo?

«Eu tenho pejo em fazer alguma coisa» ou «tenho pejo de fazer alguma coisa»?

Obrigada.

Resposta:

Apesar de o Dicionário Prático de Regência Nominal de Celso Pedro Luft não atestar o substantivo pejo, o registo dos seus sinónimos vergonha e pudor no mesmo dicionário permite avaliar a frase em questão.

Verifica-se, assim, que vergonha e pudor regem a preposição de, mas pudor rege também a preposição em. Deste modo, infere-se que pejo poderá também reger as duas preposições: «eu tenho pejo/pudor/vergonha de fazer alguma coisa»; ou «eu tenho pejo/pudor em fazer alguma coisa».

Note-se que o substantivo vergonha pode reger a preposição para, como no seguinte exemplo: «reconhecer a sua ignorância não é vergonha para ninguém»O mesmo sucederá com pejo: «reconhecer a sua ignorância não é pejo para ninguém».