Sara Mourato - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Sara Mourato
Sara Mourato
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Licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre em Língua e Cultura Portuguesa – PLE/PL2. Com pós-graduação em Edição de Texto, trabalha na área da revisão de texto. Exerce funções como leitora no ISCTE.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Qual destas frases é a correta: «Ao nascer, recebemos o sobrenome da família», ou «Ao nascermos, recebemos o sobrenome da família»?

Grata pela atenção e parabéns pelo trabalho!

Resposta:

O infinitivo flexionado ou não flexionado em orações subordinadas adverbiais reduzidas de infinitivo nem sempre é claro, o que levanta, muitas vezes, questões como a colocada pelo consulente. Contudo, no caso em questão, o uso de uma ou de outra forma verbal está correto:

1. «Ao nascer, recebemos o sobrenome da família.»

2. «Ao nascermos, recebemos o sobrenome da família.»

Considera-se que, para a escolha da forma infinitiva não flexionada em 1, serve como referência somente a ação de nascer. Já em 2, há a necessidade de se pôr em evidência o sujeito da ação, que no caso, se subentende ser nós. Pode, então, afirmar-se que se trata «de um emprego selectivo, mais do terreno da estílística do que, propriamente, da grámática», como evidenciam Celso cunha e Lindley Cintra, na Nova Gramática do Português contemporâneo (pág. 487).

Pergunta:

Existe a palavra reconvívio? Não faz sentido para mim, mas já li, e daí a minha pergunta.

Resposta:

O nome reconvívio e verbo reconviver não estão atestados em nenhum dos dicionários consultados1, mas uma pesquisa Google indicia que têm em uso consolidado, principalmente no português do Brasil. 

A verdade é que se trata de palavras bem formadas: ao nome convívio e ao  verbo conviver, agrega-se o prefixo latino re-, que lhes atribui a noção de repetição, isto é, «regresso ao convívio» e «conviver novamente». Por isso, não há razão para não os considerarmos corretos.

 1 Consultaram-se as seguintes obras: Dicionário Eletrônico HouaissInfopédiaPriberamMichaelisAulete digitalDicionário da Língua Portuguesa Contemporânea.

Pergunta:

É possivel utilizar «em que» em vez de onde como pronome para juntar as frases?

Por exemplo: «Conheço uma clínica em que fazem essa cirurgia» em vez de «Conheço uma clínica onde fazem essa cirurgia»?

Obrigado pelo vosso tempo.

Resposta:

O advérbio relativo de lugar onde pode ser, efetivamente, substituído pela construção em que sem alterar o significado da frase onde ocorre. Assim, «conheço uma clínica onde fazem essa cirurgia» é sinónimo de «conheço uma clínica em que fazem essa cirurgia». Há ainda outra construção possível, também ela sinónima, com a preposição em e o pronome relativo qual: «conheço uma clínica na qual fazem essa cirurgia». 

Contudo, importa referir que, nem sempre isto acontece. Isto é, o termo onde emprega-se quando nos referimos a lugares e, neste caso, pode ser substituído por em que no/na qual (cf. exemplos acima); mas, quando em queno/na qual não se referem a lugares, então não se pode utilizar onde: «o processo em que tal foi referido, foi arquivado». No exemplo, não podemos assumir que processo seja um lugar, logo, não é correto optarmos pelo advérbio onde.

Pergunta:

Perguntava-vos se a falta de contração observada na frase é admissível ou é reprovada pela norma: «Convidou as pessoas "de ali" perto.»

Obrigado.

Resposta:

Escreve-se geralmente dali, como contração do encontro da preposição de com o advérbio de lugar ali.

No quadro da Base XVIII, 2, do norma ortográfica em vigor, a forma dali faz parte das formas vocabulares que «constituem, de modo fixo, uniões perfeitas». Sendo assim, deve escrever-se: «convidou as pessoas dali perto.» O mesmo se verifica noutros casos, como por exemplo: daqui (de + advérbio aqui), deles (de + pronome eles), deste (de + pronome este), dantes (de + advérbio antes), etc.

No entanto, a separação é possível se de introduzir uma oração de infinitivo de que ali faça parte como primeiro constituinte: «Tenho vontade de [ali construir uma casa]».

1 O preceito do ponto 2 da base XVIII do Acordo Ortográfico de 1990 .é enunciado no contexto do (não) uso do apóstrofo e repete o disposto na Base XXXIII da norma de 1945.

Pergunta:

Gostaria de saber se se diz «Espero que tudo “corra” bem» ou «Espero que tudo “decorra” bem»?

Resposta:

As frases apresentadas – «espero que tudo corra bem» e «espero que tudo decorra bem»  são sinónimas, o que significa que o uso dos verbos decorrercorrer é correto.

Convém, no entanto, assinalar que, quando a intenção é pedir informação ou opinião globais sobre a realização uma de prova ou um evento, o verbo geralmente empregado é correr: «P: Então, como correu o exame? R: Correu bem/mal»1. Também se usa mais correr quando associado a um desejo: «espero que corra tudo  bem».

De acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia de Ciências de Lisboa, estes verbos podem ser sinónimos quando usados com o sentido de «ir passando o tempo («O dia correu/decorreu bem»); e «ter lugar» («Como é que decorreu/correu a tua festa?»)». Note-se, contudo, que nesta última acessão, «ter lugar», o verbo decorrer pode não ser sinónimo de correr, mas sim de acontecer, desenrolar-se ou processar-se, veja-se: «o festival não pode decorrer num dia chuvoso», «as operações decorriam com bastante minúcia», «o jantar decorreu com grandes silêncios».

  

1 No Corpus do Português, de Mark Davies, a pesquisa de uma expressão como «correu bem» faculta 33 resultados, enquanto «decorreu bem» não conta com nenhuma ocorrência. O Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintáti...