Sara Mourato - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Sara Mourato
Sara Mourato
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Licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre em Língua e Cultura Portuguesa – PLE/PL2. Com pós-graduação em Edição de Texto, trabalha na área da revisão de texto. Exerce funções como leitora no ISCTE.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Acabo de ler um texto escrito por um excelente escritor. Nesse texto, podemos ler que «As eleições foram fraudadas».

Uma vez que o referido autor usa várias expressões na variante brasileira do português, pergunto-me se o termo fraudado é próprio do Brasil ou se, por outro lado, pode/deve ser usado na frase em questão.

Intuitivamente, diria que se deve escrever fraudulentas, mas não poderei propor uma «adaptação» com base na intuição.

Muito obrigado.

Resposta:

O verbo fraudar, do latim fraudare, existe e está atestado com o significado de «1. cometer burla; fazer cair em logro, engano, por meios ilícitos = burlar, defraudar; 2. deixar lesado, prejudicado = defraudar; 3. fazer candonga ou contrabando; 4. + -se. dar ou ter mau resultado; sair-se mal = falhar, gorar, frustrar-se» (Academia das Ciências de Lisboa, Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea).

Contudo, em Portugal, o seu uso é quase inexistente, como pode atestar uma pesquisa feita no Corpus do Português, de Mark Davies. Em contrapartida, recorre-se a verbos sinónimos, presentes na definição de fraudar do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea citado, ou a adjetivos, como sugere o consulente: «as eleições foram fraudulentas».

Já no Brasil, o uso deste verbo parece ser mais corrente: «Operação mira grupo de empresas suspeito de fraudar licitações em várias prefeituras cearenses», «Uma lei municipal, já aprovada e sancionada, determinou uma multa de R$ 1 mil para quem tentar fraudar o comprovante».

Pergunta:

No Brasil são comuns frases como «Espera ele vir» ou «Estamos esperando ele chegar».

Em português correto dir-se-á «Espera-o vir», «Estamos esperando-o chegar» ou «Estamos a esperá-lo chegar», não é assim?

Nessas frases, qual é o sujeito de vir e chegar?

Excelente trabalho o vosso! Muito obrigado!

Resposta:

Do ponto de vista da norma-padrão, as orações «"espera-o" vir», «estamos "esperando-o" chegar» e «estamos a "esperá-lo" chegar» são agramaticais. As formas corretas são, respetivamente, «espero que ele venha», «estamos esperando que ele chegue» e «estamos a esperar que ele chegue», tanto em Portugal como no Brasil como noutros países de língua portuguesa.

Em casos em que o verbo em questão seleciona uma oração subordinada substantiva completiva1, o verbo da subordinada ocorre no conjuntivo (subjuntivo no Brasil), sempre que tem valor referencial diferente do do sujeito de esperar, como se comprova em 1 e 2:

1. «espera que ele venha»;

2. «estamos esperando que ele chegue».

Em 1, o sujeito de «espera» não é o mesmo de «venha», e o mesmo acontece em 2, com «estamos esperando»2 e «ele chegue».

No entanto, o verbo em dúvida pode ser seguido de uma oração subordinada de infinitivo, quando o sujeito que lhe está associado e o sujeito da oração subordinante tiverem a mesma referência (i. e., dizem respeito à mesma pessoa):

3. Espero vir/chegar ainda hoje.

Em 3, o sujeito subentendido de esperar é eu, e o de vir/chegar também, coincidência que legitima a oração de infinitivo.

As construções «espera ele vir» e «estamos esperando ele chegar» podem atestar-se, por exemplo, no Corpus do Português (Mark Davies), e talvez se trate de usos coloquiais que as fontes gramaticais consultadas3 não referem.

Menos legítima se torna ainda uma construção como «espera-o vir», que não encontra qualquer atestação. O caso de ver, compatível com a construção com -o e infinitivo («vejo-o chegar»4, que se aceita sem estranheza) está circunscrito aos verbos de perceção (ver,

Pergunta:

Gostaria de saber qual é a tradução da palavra italiana bruschetta. Todos os dicionários em que procuro põem a mesma palavra como tradução.

Muito obrigado.

Resposta:

Bruschetta, palavra italiana que designa um «antepasto, de origem italiana, feito com pão, que é tostado em grelha com azeite e depois esfregado com alho, a que geralmente se juntam fatias ou pedaços de tomate fresco e folhas de manjericão», tem aportuguesamento registado no Dicionário Priberam e no Dicionário Infopédia: brusqueta.

A verdade é que, à semelhança de outros aportuguesamentos, como penalty, que virou penálti ou pênalti, não há nada de errado no aportuguesamento de brusqueta, sendo que as palavras italiana e portuguesa se pronunciam da mesma maneira. 

Note-se, porém, que, na cozinha tradicional portuguesa, há formas parecidas de preparar o pão, como acontece com o torricado ou com a tiborna, este já aplicado a uma confeção menos semelhante.

Pergunta:

Em português europeu, o sufixo -oco/-oca serve para fazer o aumentativo ou o diminutivo?

Vi, num material da Editora Leya, que servia para diminutivo. Como exemplos, davam as palavras bicharoco, fraldoca e pernoca. No entanto, no dicionário online Infopedia.ptpernoca é referida como aumentativo de perna e bicharoco como bicho repugnante (fraldoca não consta).

Qual o uso correto, em português europeu?

Resposta:

As formas -oco/-oca, que correspondem ao masculino e ao feminino, respetivamente, constituem um sufixo que permite derivar um nome a partir de bases nominais  (diz-se que é sufixo nominalizador denominal avaliativo) e que exprime um juízo de valor do locutor em relação ao conteúdo semântico da palavra-base1.

Contudo, este juízo de valor não define o valor aumentativo ou diminutivo do substantivo a que -oco/-oca se agrega. A verdade é que -oco/-oca pode ocorrer como aumentativo, como em pernoca, ou como diminutivo, como em passaroco  – neste último caso pode ainda ter um valor depreciativo, ou seja, a opção de usar a marca do diminutivo associado ao substantivo tem uma carga depreciativa.

Em ambos os casos, o valor associado ao sufixo pode ainda ser afetivo, isto é, associar -oco/-oca a um substantivo ocorre porque se pretende demonstrar afeto quando se utilizam paravras como beijoca, pernoca, passaroco, bicharoco, dorminhoco, etc. Também sufixos de aumentativo ou diminutivo mais correntes, como -ão (caldeirão) ou -inho (toquezinho), podem revestir-se de intenção afetiva, mas esta carga subjetiva pode não ser tão saliente como a que se associa a -oco/-oca.

 

1 Ver -oco no Dicionário Houaiss. Sobre sufixos avaliativos, ver a

Pergunta:

Ouvi a palavra "formulaico" e gostaria de saber se é um neologismo que podemos utilizar, ou se devemos adoptar uma palavra equivalente.

Apesar de não ter encontrado em nenhum dicionário físico, a palavra está contemplada no sítio web da priberam.

Muito obrigada!

Resposta:

Efetivamente formulaico é um adjetivo registado no Priberam, assim como noutros dicionários em linha como o Dicionário Informal, e tem o significado de «relativo a fórmula = formular; que obedece a determinado padrão ou fórmula» (dicionário Priberam). Atendendo ao seu significado entende-se que formular é um adjetivo equivalente e que, por seu lado, tem um registo mais antigo. 

Não obstante, não há nada que impeça o uso do neologismo formulaico1. A verdade é que estamos perante um adjetivo formado a partir do substantivo fórmula ao qual se junta o sufixo -aico («indica relação, geralmente na formulação de adjetivos» – ibidem), o que sucede com tantos outros em língua portuguesa: voltaico, prosaico, arcaico

Assim, quando o sítio Comunidade Cultura e Arte refere «A música cabo-verdiana transformada num R&B que gerou enorme popularidade foi contagiante, embora o concerto tenha tido um sabor algo formulaico» também poderia dizer «A música cabo-verdiana transformada num R&B que gerou enorme popularidade foi contagiante, embora o concerto tenha tido um sabor algo formular», sendo que ambas as hipóteses estão corretas.

 

1 O termo terá chegado à língua portuguesa por via do inglês formulaic, adjetivo do final do século XIX – «made up of fixed patterns of words or ideas» (...