Sara Mourato - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Sara Mourato
Sara Mourato
44K

Licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre em Língua e Cultura Portuguesa – PLE/PL2. Com pós-graduação em Edição de Texto, trabalha na área da revisão de texto. Exerce funções como leitora no ISCTE.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

«Este homem acordava de um derrame», ou «Este homem acordou de um derrame»?

Ambas as frases estão certas em português europeu?

Resposta:

As frases apresentadas pelo consulente estão corretas e são aceites em português europeu e brasileiro. No entanto, convém analisá-las para se perceber a diferença entre elas e aquilo que torna uma delas incompleta:

1. «Este homem acordava de um derrame»;

2. «Este homem acordou de um derrame.»

Trata-se de duas frases cujo tempo verbal é distinto: em 1. o tempo verbal é o pretérito imperfeito, e em 2. o verbo ocorre no pretérito perfeito.

Assuma-se que estes dois verbos se distinguem por «o pretérito imperfeito exprim[ir] o facto passado habitual» e «exprim[ir] a acção durativa, e não a limita[r] ao tempo». Já o pretérito perfeito exprime o facto passado «não habitual», «indica a acção momentânea, definida no tempo» e apresenta a situação como concluída (Cunha e Cintra, Gramática do Português Contemporâneo, pp. 450/451, 1984).

Sendo assim, pode-se propor que a afirmação em 2. se refere a um intervalo passado, em que um homem acordou de um derrame, situação descrita como não habitual, momentânea e concluída. Já a afirmação 1. precisa de uma outra análise. A verdade é que, apesar de estar correta, a frase «este homem acordava de um derrame» precisa de ter associada a marcação de tempo de referência, de outro modo, a construção não é adequada para descrever situações localizadas no passado relativamente ao tempo da enunciação, há como que uma falta de enquadramento. Posto isto, aceitam-se construções como em (3) ou (4): 

3. «Este homem acor...

Pergunta:

Quando em inglês se diz America, referindo-se os Estados Unidos, será legítimo traduzir por Estados Unidos, sendo que América será um termo que engloba todo o continente americano? E, nesse caso, deverá American ser traduzido por estado-unidense?

Apesar do uso comum de americano para definir os habitantes dos EUA, não será esse um termo muito genérico que poderia até incluir canadianos, mexicanos e afins, que também vivem no continente americano?

Obrigado.

Resposta:

Em Portugal, é legítimo empregar América, ainda que algo impróprio, como encurtamento de Estados Unidos da América, expressão mais completa e mais formal. Aceita-se também americano e legitima-se norte-americano como termos referentes aos cidadãos dos Estados Unidos; mas não é inusitado estado-unidense, cuja variante estadunidense será, no entanto,  mais corrente no português do Brasil. 

Esta questão levanta alguma polémica, porque, como o consulente refere, americanos são todos os habitantes do continente americano, assim como europeus são os habitantes da Europa, africanos, os habitantes de África, e por aí fora.Também norte-americanos pode levantar algumas questões, uma vez que este gentílico engloba, por exemplo, os habitantes do Canadá, por estarem em território norte-americano. 

Contudo, polémicas à parte, a verdade é que o Código de Redação Interinstitucional regista apenas o gentílico norte-americano em referência a habitantes do Estados Unidos da América. Dicionários publicados em Portugal1, além de norte-americanos, atestam americano/americana como gentílicos válidos que denotam os cidadãos dos Estados Unidos. Incluem também, estado-unidense, forma, portanto, ...

Pergunta:

Na frase «A Coreia do Sul é um dos países que mais bem têm controlado a pandemia» não será preferível escrever melhor?

Obrigado.

Resposta:

Com os tempos compostas de verbos na voz ativa, os advérbios melhor e pior mantêm estas formas, e, portanto, a frase correta é «a Coreia do Sul é um dos países que melhor têm controlado a pandemia».

Diz-se e escreve-se melhor, porque o advérbio está a modificar um tempo composto na voz ativa: «tem controlado».

No âmbito da tradição normativa, só se imporia «mais bem» como comparativo/superlativo de bem se se tratasse da voz passiva ou de um particípio passado usado adjetivalmente: «a pandemia foi mais bem controlada na Coreia do Sul»; «os surtos mais bem controlados foram os da Coreia do Sul»1.

Claro que «mais bem/mal» é compatível com a construção que exprime posse ou resultado e que se confunde com tempos compostos: «O presidente da Coreia do Sul tem o seu parlamento mais bem controlado do que os presidentes dos outros países».

 

1 Cf. Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 1984, p.  546:

«A par [de melhor e pior], existem os comparativos regulares mais bem e mais mal, usado , de preferência, antes de adjetivos-particípios:

As paredes da sala estão mais bem pintadas que as dos quartos.

Não pode haver ...

Pergunta:

Cancelar e suspender são sinônimos?

Mais uma vez, leio, vejo e ouço por aí afora bastantes pessoas falando em suspender alguém ou algo de algum(a) lugar ou coisa, porém, o correto não é cancelar?

Pois, em meu entendimento (que é limitado de verdade...), cancelar é «acabar» ou «encerrar de vez», já suspender é «paralisar» ou «pausar por algum tempo determinado ou indeterminado e de prontidão».

Resposta:

Os verbos cancelarsuspender são aceites como sinónimos quando os usamos no sentido de: «interromper (algo) temporária ou definitivamente» (exemplo: «suspendi/cancelei o castigo do meu filho») ou «não realizar (o que estava decidido ou planejado)» (exemplo: «suspendi a viagem») (dicionário Houaiss).

A verdade é que estes verbos têm, além das aceções acima descritas, outras que excluem a sua sinonímia (ibidem). Por exemplo, quando suspender se refere a ter algo pendente («suspendeu o candeeiro do teto»), ou quando se impede alguém de exercer as suas funções por determinado tempo como castigo («suspenderam-no do cargo»). No caso de cancelar, este deixa de ser sinónimo de suspender, quando denota uma situação em que se anulou um compromisso ou o que foi escrito ficou sem efeito («cancelámos o jantar/o contrato»).

Pergunta:

Diz-se «desesperadamente» ou «desesperantemente»?

Ambos os termos estão corretos?

Se sim, são sinónimos?

Resposta:

Ambos os advérbios de modo, desesperadamente desesperantemente, estão bem formados e existem em língua portuguesa, como atesta o dicionário Priberam. Contudo, não podem ser considerados sinónimos. Para melhor se entender, reparare-se nos diferentes advérbios:

1. desesperadamente é um advérbio formado pela agregação da terminação -mente ao adjetivo desesperado. Portanto, quando se afirma que «ele bateu à porta desesperadamente », estamos a firmar que ele está em desesperação quando o faz, ou irremediavelmente perdido, furioso ou zangado;

2. desesperantemente, é também formado pela terminação -mente e pelo djetivo desesperante. Afirmar-se que «o processo é desesperantemente lento» significa que o processso se desenrola de modo desesperante. Atendento ao significado de desesperante, percebe-se que o desenrolar deste processo causou desespero, isto é, raiva, zanga, frenesi a terceiros.

Assim, se em 1. a pessoa que pratica a ação nutre os sentimentos associados a «estar desesperado», em 2. é a pessoa que assiste à ação que detém esses sentimentos. Note-se, no entanto, que o advérbio desesperantemente é escassamente utilizado, sendo que se opta por outra construção que contorne este advérbio, como por exemplo «a lentidão com que se desenrola o processo é desesperante». Aqui, em vez de se optar pelo advérbio, recorre-se ao adjetivo desesperante.