Sara Mourato - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Sara Mourato
Sara Mourato
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Licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre em Língua e Cultura Portuguesa – PLE/PL2. Com pós-graduação em Edição de Texto, trabalha na área da revisão de texto. Exerce funções como leitora no ISCTE.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

É aconselhável o uso da locução prepositiva «devido a» introduzindo orações causais reduzidas de infinitivo? Ex.:

«Não é bom que andemos de barco hoje devido ao mar estar bastante agitado...»

Resposta:

A frase em questão apresenta alguns problemas que condicionam a sua aceitabilidade.

Maria Helena de Moura Neves, no seu Guia de Usos do Português (São Paulo, Editora UNESP, 2003), considera que é legítimo o emprego da locução «devido a», sinónima de «em virtude de», «em razão de» e «por causa de», apesar de alguns normativistas não a aceitarem. Note-se, porém, que, seguindo-se à locução uma oração de infinitivo começada por uma expressão nominal introduzida por artigo definido («o mar», como acontece no exemplo em questão), seria de recomendar a não contração da preposição com o artigo; com efeito, se se escreve «em virtude de o mar estar agitado», então deveria ter cabimento desfazer a contração: «devido a o mar estar bastante agitado». Acontece que a não contração se afigura estranhíssima, o que poderá ser contornado de duas maneiras:

a) optando pela contração, o que significa fugir ao critério de separação no contexto em apreço – é a solução apresentada pelo consulente;

b) ou adotando outra construção: «devido ao mar, que está bastante agitado»; «devido à agitação do mar».

Do ponto de vista estilístico, a solução b) afigura-se preferível.

Pergunta:

A palavra inactual, aparentemente, não existe. Não vem no dicionário, nem no Priberam. Mas é errado "fazer" essa palavra, para designar o que não é actual, como inútil é o que não é útil?

Obrigado.

Resposta:

Apesar de não vir atestada em todos os dicionários, a verdade é que a palavra inatual existe. Em dicionários recentes ou frequentemente atualizados, a palavra é registada com as seguintes aceções: «não atual, que não está atualizado; antiquado; contrário às tendências atuais; sem relação com as circunstâncias atuais», no Dicionário Houaiss (Rio de Janeiro: Instituto Houaiss/Objetiva, 2001); «que não é atual; obsoleto; ultrapassado; que está fora do seu tempo; antiquado» (Dicionário UNESP do Português Contemporâneo, São Paulo, Editora UNESP, 2004); «que não é atual», no dicionário da Porto Editora (em linha).

Refira-se ainda que, em Portugal, antes da aplicação do novo acordo ortográfico, o adjetivo em questão bem como o que é sua base de derivação se escreviam, respetivamente, inactual e actual. A mudança ortográfica determina a supressão da consoante muda c , pelo que as referidas palavras passam a atual e inatual.

Pergunta:

Diz-se «calçar as joelheiras», ou «vestir as joelheiras»? Ou há ainda outra possibilidade?

Obrigado.

Resposta:

Em associação à palavra joelheiras, tanto uma como outra das hipóteses apresentadas pelo consulente parecem estar corretas. Assim, tanto se pode dizer «calçar as joelheiras», uma vez que o verbo calçar pressupõe «revestir os pés, as pernas e as mãos de (calçados, luvas etc.) ou revestir-se» (Dicionário Houaiss), como se pode dizer «vestir as joelheiras», sendo que vestir, entre outras aceções, remete para «pôr (peça de roupa)» (cf. idem). No entanto, mais comum do que dizer «calçar as joelheiras» e «vestir as joelheiras» é dizer «pôr as joelheiras», sendo que o verbo pôr surge como sinónimo de calçar e vestir («pôs um casaco novo» = «vestiu um casaco novo»; «pôs uns sapatos novos» = «calçou uns sapatos novos»; ver pôr no Dicionário Houaiss).

Pergunta:

Qual a diferença existente entre tecnoleto e gíria?

Resposta:

Por gíria entende-se «linguagem informal com vocabulário rico em expressões metafóricas, jocosas, elíticas e mais efémeras que as da língua tradicional; dialeto usado por determinado grupo social [O seu processo de formação inclui acréscimo de sons ou sílabas, uso de certos códigos etc.]; linguagem de marginais, difícil de ser compreendida por outras classes sociais, e que costuma funcionar como mecanismo de coesão tribal [A gíria, a princípio linguagem de marginais, estendeu-se a outros grupos sociais]» (Dicionário Houaiss).

Quanto a tecnoleto, define-se este termo como «cada uma das variedades de uma língua que reúne o linguajar e o conjunto do vocabulário usado para expressar a tecnologia e o agir de uma ciência, arte, desporto, área técnica e/ou tecnológica, em qualquer campo específico de conhecimento e/ou profissional»; p. ex., software, armazenar dados, na informática; sintagma, morfema, gerar uma sentença, na gramática e na linguística; plié e pas de deux, no balé etc.» (idem).

Resumindo, enquanto gíria é uma linguagem informal mais abrangente, tecnoleto restringe-se a determinados campos específicos de conhecimento técnico.

Pergunta:

Estas formas estão corretas? Se não, qual seria o aconselhável?

1. calças vermelho-metálicas

2. placas amarelo-transparentes

3. mesas branco-foscas

4. garrafas azul-claras transparentes

5. mesas marrom-escuras foscas

6. latarias verde-claras metálicas

Resposta:

As expressões apresentadas estão corretas.

Todos os adjetivos compostos referentes a cores apresentados pelo consulente — vermelho-metálico, amarelo-transparente, branco-fosco, azul-claro, marrom-escuro, verde-claro — são formados por dois adjetivos. Por exemplo, em «placas amarelo-transparentes, amarelo é usado adjetivalmente, e transparentes é o plural do adjetivo transparente. Este tipo de adjetivos compostos faz a concordância do seguinte modo: se o segundo elemento do composto é um adjetivo, este concorda em género e número com o substantivo a que se referem («placas amarelo-transparentes»/«placa amarelo-transparente)».

Observe-se, no entanto, que, nos exemplos 4, 5 e 6, os adjetivos transparente, fosco e metálico não são constituintes de adjetivos compostos, mas, sim, adjetivos simples que se coordenam com adjetivos compostos (azul-escuro, marrom-escuro, verde-claro) para modificar substantivos. Sobre estes adjetivos simples, nada há de especial a dizer, a não ser que seguem as regras gerais da concordância.

Note-se ainda que, sendo o segundo elemento do composto um substantivo, este fica invariável («canário amarelo-ouro»/«canários amarelo-ouro»; Nova Gramática do Português Contemporâneo, 3.ª ed., 1986, p. 252). Saliente-se ainda que os compostos relativos a cores podem ter os dois elementos no singular ou no plural se estes forem usados como substantivos: «o vermelho-metálico»/«os vermelhos-metálicos».