DÚVIDAS

A existência do aspecto perfeito resultativo em português

No artigo de Edite Prada em Ciberdúvidas O conceito de aspecto linguístico 1 , ela não menciona a existência de aspecto perfeito (diferente do aspecto perfectivo). Acho que este aspecto existe em português, porém tem uma importância reduzida em comparação com o papel que tem em outras línguas romanas. Se aceitamos que o aspecto é a relação não dêictica entre dois intervalos de tempo, o aspecto perfeito é a variedade aspectual que focaliza os resultados de uma ação. No aspecto perfeito resultativo, falamos do resultado de um único evento. Ofereço os seguintes exemplos de frases em português que para mim expressam o aspecto perfeito resultativo:

(1) Doroti confirma que já têm chegado vários protestos de quem transporta os idosos. (já têm chegado = aspecto perfeito resultativo)

(2) Quando Isabel chegou, Suely já tinha saído. (já tinha saído = aspecto perfeito resultativo)

(3) Às 21h00 uma amiga enfermeira que tinha-me encaminhado a um médico de posto de saúde ligou para ele mas este já tinha ido embora. (já tinha ido embora = aspecto perfeito resultativo).

Os senhores concordam com minha análise de estas frases?

Eugênio Geppert
Florida
EUA


1O consulente parece ter feito uma confusão, porque a resposta a que se refere é de Carlos Rocha. No entanto, a consultora Edite Prada, que é autora da resposta O aspecto dos verbos acedeu amavelmente em responder.

Resposta

Gostaria, antes de mais, de repetir, e salientar, o que comecei por dizer na resposta O aspecto dos verbos: a semântica frásica não é a área da língua portuguesa em que me sinto mais à vontade. Devo dizer, igualmente, que, mesmo em áreas em que me sinto um pouco mais confortável, há abordagens teórico-metodológicas que não me atreveria a fazer.
Vem esta introdução a propósito da resposta em curso que poderá não satisfazer o consulente, pois parece-me muito mais bem documentado do que eu no que ao aspecto linguístico diz respeito.
Ainda assim, dos documentos que consultei para poder responder, ressalta um aspecto que me pareceu consensual: na sua relação directa com o desenrolar da acção, ou evento, os aspectos primordiais são dois: perfectivo, ou perfeito; imperfectivo ou imperfeito. Esta bipartição, se assim lhe podemos chamar, está, parece-me, bem sintetizada no artigo Interpretação temporal: representação e raciocínio, de Emiliano Gomes Padilla: «O aspecto verbal indica o ponto de vista em que se deve ver a ação: do ponto de vista em que já ocorreu ou ainda decorre», in http://www.inf.ufrgs.br/~emiliano/semin.html
De uma forma genérica poder-se-ia dizer que perfeito e perfectivo são formas distintas de dizer a mesma coisa.
Partindo deste ponto de vista – e sem pôr em causa abordagens específicas, legítimas, em contextos também específicos e de legitimidade inquestionável – analisemos as frases em apreço:

(1) Doroti confirma que já têm chegado vários protestos de quem transporta os idosos.

(2) Quando Isabel chegou, Suely já tinha saído.

(3) Às 21h00 uma amiga enfermeira que tinha-me encaminhado a um médico de posto de saúde ligou para ele mas este já tinha ido embora.

Na frase (1) «(já) têm chegado» indica a ocorrência, não de um evento, mas de vários, em número indeterminado, não havendo qualquer certeza de que o fenómeno designado já tenha cessado, se encarado na globalidade. Neste caso, creio que há um aspecto habitual, a que se associa o aspecto iterativo. Porque se mantém a possibilidade de ocorrência no momento da enunciação, diria que estamos perante o aspecto imperfectivo, ou imperfeito, pois os protestos poderão continuar a chegar.
Em (2) não temos um ponto de observação, mas dois, cada um deles focando um evento. Assim, do ponto de vista do acto narrativo é focado um primeiro evento («chegou»), face ao qual um outro, que lhe é anterior, ocorreu («tinha saído»). Estamos perante dois eventos – chegou e tinha saído (ou saíra) –, ambos anteriores ao tempo da observação e um anterior ao outro. No momento da enunciação, ambos estão concluídos, veiculando, pois, ambos o aspecto perfectivo ou perfeito. Em ambos os eventos poderemos identificar um resultado – chegou: a chegada da Isabel; tinha saído: a saída da Suely.
Semelhante a (2) é, creio, o que ocorre em (3), sendo a actividade ligou e o evento tinha ido embora, anteriores ao momento de focalização, ambos conclusos, associáveis, por isso, grosso modo, ao aspecto perfectivo ou perfeito.

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