DÚVIDAS

A pronúncia da palavra contexto

Um deputado, licenciado em Direito, pronuncia, na palavra contexto a sílaba -tex valendo tês. Todavia, o Dicionário Porto Editora confere à sílaba em questão a elocução –teis, o que está, aliás em consonância com texto, contextual, contextuação, etc.

Para mim, que sou ignorante nestas matérias, e, para mais sem a proeminência de ser deputado eleito da A. R., testo com aquela pronúncia só conheço na acepção: «tampa de vasilha», «cabeça», «chapéu».

Todavia, tendo em conta a proveniência do referido homem público, ficamos na dúvida se estamos na presença de uma variante insular açoriana, ou, pelo contrário, não passa de pura alarvice, isto na hipótese de que tenha completado no continente a sua instrução primária.

Resposta

As transcrições fonéticas disponíveis em dois dicionários portugueses (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, e Grande Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora) realmente indicam que, em português europeu, a pronúncia-padrão de contexto tem a sílaba tónica pronunciada como "tâis" e não como "tês". Daí a considerar-se que a variante com "tês" possa ser, como se diz no comentário do consulente, «pura alarvice» parece-me mais discutível. Explico porquê:

a) o falante em causa pode realmente usar uma pronúncia dialectal, que neste caso não posso confirmar como açoriana, já que é sobretudo nos dialectos meridionais de Portugal Continental que se articula e se ouve "contêsto";

b) as pronúncias regionais não estão erradas, pelo contrário, às vezes são vestígios de épocas passadas, outras, sinal de eventual mudança; e a razão da norma até pode tolerá-las, pelo menos, até certo ponto: um deputado de Braga pode muito bem pronunciar "voto", de acordo com o padrão, mas, sem dar grande escândalo, pode também dizer que dá «o seu "boto"», por variadíssimas razões, das quais nem terá grande consciência (a maneira como se fala é também emoção, afectos e ecos de uma infância esquecida);

c) mas a razão da norma não é coerente, e mais difícil se torna a este deputado de Braga referir-se à "tchabe" do problema, mesmo que tenha sido assim que, em criança, ouvia a palavra àquela avó de Cabeceiras de Basto ou àquele caseiro de Castro Laboreiro: é que a antiga africada é rejeitada ou inclusivamente desconhecida pela maioria dos falantes de português europeu, até entre os que vivem na região dos dialectos setentrionais portugueses — talvez porque estes achem preconceituosamente que o som "tch" é marca de rusticidade (ninguém quer ser alarve, nem rústico, a partir do momento em que estas palavras — que não têm culpa — passam a termos pejorativos);

d) pode também acontecer que "contêsto" se deva de facto à história escolar da figura em causa, e, em particular, a um processo que se descreve como pronúncia induzida pela escrita: nesse caso, até se pode conjecturar que a pronúncia da variedade materna do deputado era muito próxima do padrão; mas, por qualquer motivo, durante os primeiros anos de alfabetização, alguém (quem sabe se o próprio visado?) julgou mais correcto seguir a grafia: o futuro deputado passou a pronunciar "contêsto", porque a grafia da segunda sílaba apresenta um e e não um ei — nesse caso, a então criança foi corrigida ou quis corrigir-se sem haver falta, ou seja, caiu na hipercorrecção;

e) quanto a achar que a pronúncia "contêsto" é de rejeitar porque acarreta a confusão com a sequência «com testo», isto é, «com tampa», cabe-me observar que há muitas sequências homófonas na pronúncia do português europeu-padrão e nem por isso se altera a pronúncia: «despenha» vs. «de Espanha»; «rio» vs. «riu».

Em resumo, compreendo as intenções satíricas do apontamento do consulente, mas sobra para mim a ingrata e pouco humorística tarefa de recordar mais uma vez, sem apelo ao ridículo, que os desvios linguísticos são uma boa oportunidade para reflectir sobre a historicidade e o convencionalismo das normas, que não deixam de ser necessárias, não o nego.

ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de LisboaISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa