DÚVIDAS

Dêixis no verso «O que em mim sente está pensando»

Na frase «O que em mim sente está pensando», as formas verbais, apesar de pertencerem à 3.ª pessoa, visto que do ponto de visto pragmático correspondem à primeira pessoa, são deíticos pessoais e temporais?

Antecipadamente grata.

Resposta

A questão que coloca é bastante complexa porque a poesia não corresponde a um ato de enunciação ocorrido numa situação real, a qual assume como origem de referência o eu, situado num dado espaço (o aqui) e num dado momento de enunciação (o agora).

O texto literário, todavia, pode convocar elementos deíticos para a sua construção. Todavia, o texto literário não ocorre no mundo onde está o leitor ou o autor, fundando-se num eu-aqui-agora distinto. O texto literário, como explica Silva, «projeta o leitor em outro mundo, que não é onde ele está, que não é onde se encontra ancorado pelas coordenadas da situação concreta; no entanto, o eu-aqui-agora é que possibilita a transposição para esse mundo ausente.»1

Nesta perspetiva, o poema pessoano instaura um aqui e agora, associados ao “eu” poético, a partir do momento em que, na quarta estrofe, se dirige à ceifeira, que inaugura como “tu”, o que fica patente no uso do imperativo («Canta») e uso dos demonstrativos e do pronome de 2.ª pessoa: «tua incerta voz ondeando!»; «Ah, poder ser tu»; «tua alegre inconsciência»). Ao criar, no seu poema, este contexto de enunciação, o sujeito lírico assume-se como locutor da sua enunciação, o que fica marcado pelo uso dos pronomes e do determinante de 1.ª pessoa: «O que em mim sente está pensando»; «meu coração»; «sendo eu».

Não obstante o que ficou dito, não poderemos considerar que, no verso «O que em mim sente está pensando», as formas verbais sente e está são deíticos pessoais, pois não “mostram” a 1.ª pessoa. Será, eventualmente, possível avançar a interpretação de que o sujeito lírico evidencia, por meio desta construção, um processo de despersonalização falando do seu “eu” que sente, como um ele, uma não pessoa deítica, e como se dentro dele existisse outro “eu” (eventualmente, aquele que só pensa e não sente).

Diga-se, ainda, que a análise da dêixis no texto literário convoca sempre uma espécie de contrato de leitura, no qual o leitor acede a ser transportado para um mundo ausente, no qual se instauram as relações deíticas. Por esta razão, os textos literários não são os melhores exemplos de análise para a introdução ao estudo da dêixis, que ocorre, por definição, num contexto real.

Disponha sempre!

 

1. Alena Silva, Os processos de referência e suas funções discursivas – o universo literário dos contos. Tese de doutorado em Lingüística – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2008, p. 113.

ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de LisboaISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa