DÚVIDAS

O valor de coincidir

Na sequência da resposta dada à minha dúvida sobre uma pergunta do exame nacional de Português do 12.º ano, que muito agradeço, devo dizer que não creio que as minhas dúvidas tenham sido bem endereçadas.

Eu não duvido de que a opção D esteja, também ela, correcta. Está, aliás, como bem foi dito na resposta em linha com a intenção geral da autora do texto. Acontece que a opção A me parece possível. Isto a menos que o verbo "coincidir" — e é este o epicentro da minha dúvida, perdoe-se-me a parca imaginação da imagem —, a menos que o verbo "coincidir", dizia, retenha pouco da sua carga etimológica (não sei que lhe chame; legado talvez se adeque). Pois, se é formado pela partícula "co" e pelo verbo "incidir", descreverá, suponho, uma incidência em comum. E essa incidência verifica-se; tanto nas leituras críticas que defendem Fernão Mendes Pinto quanto nas que o repreendem.

Porque todas parecem tratar da repreensão de que ele é alvo por relatar acontecimentos falsos.

Resposta

Uma vez que o consulente se baseia no valor do verbo coincidir como argumento para defender a sua posição de que está correta a opção A da pergunta 1.1. do Grupo II da versão 2 da Prova Escrita de Português de Exame Nacional do Ensino Secundário, não podemos deixar de analisar a respetiva etimologia e valor.

Segundo o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, coincidir deriva «do latim escolástico coincidĕre, à letra: "cair juntamente"», provavelmente pelo francês coïncider

Por outro lado, o Grande Dicionário Etimológico-Prosódico da Língua Portuguesa (1964), de Silveira Bueno, indica que o verbo coincidir, «do latim medieval coincidere, de co+incidere» teve, na sua formação (ainda na do termo latino), o elemento co-1, o que explica os significados que lhe são atribuídos «encontrar, ser idêntico em tamanho, acontecer».

Por sua vez, o Grande Dicionário da Língua Portuguesa (2010), da Porto Editora, aponta os seguintes significados a coincidir: «ajustar-se exatamente; acontecer ao mesmo tempo; concordar».

Ora, se atentarmos nas frases que são objeto de análise — «11. As leituras críticas da obra Peregrinação coincidem no que diz respeito: (A) à repreensão de que o autor é alvo por apresentar acontecimentos falsos» — e as relacionarmos com o facto de o verbo coincidir significar «concordar», «ajustar-se exatamente» ou «ser idêntico», aperceber-nos-emos de que a própria autora do texto não concorda com a leitura crítica de «repreensão de que é alvo por apresentar acontecimentos falsos». O texto revela que as várias leituras críticas sobre a obra Peregrinação não são coincidentes, o que é evidenciado logo no primeiro parágrafo, onde se diz «Não é por acaso que a sua leitura crítica tem sido controversa, às vezes desabrida, ora admoestando o autor pelas suas fantasias e mentiras, ora vindo em sua defesa com provas provadas de que aquilo que nos confia foi realmente visto e vivido, pese embora o excesso de aventuras.».

Repare-se que, para que essa opção fosse correta, não poderia haver dúvidas em relação à assertividade da frase. Ora, se umas leituras críticas admoestam o autor e outras vêm em sua defesa, não há dúvida de que não há coincidência em relação à atitude (de repreensão) para com o autor de Peregrinação.

 

1 Sobre co- (do latim cum, "com"), importa acrescentar-se os dados fornecidos pelo Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado. «elemento de composição indicativo das ideias de reunião, adjunção, companhia; encontra-se em palavras derivadas do latim (coleção, conferir) e noutras de formação moderna, geralmente de caráter culto (coeficiente, concidadão, compatriota, corresponder, etc.); «a noção de companhia e as alterações de sentido por que passou a preposição com refletem-se necessariamente no mesmo vocábulo usado como prefixo. Entretanto, nem sempre é possível fazer a análise sem recorrer ao latim. em muitos dos antigos compostos, como comercio, considerar, conservar, alterou-se o sentido primitivo de tal forma que hoje em nada parecem diferir de outras palavras simples» (Said Ali, Formação de Palavras e Sintaxe do Português Histórico, p. 26). 

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