DÚVIDAS

O verbo plasmar

No passado domingo [12/01/2025]  no programa Princípio da Incerteza com a dra. Alexandra Leitão, dr. Miguel Macedo e dr. Pacheco Pereira, a primeira intervenção coube à dra. Alexandra Leitão de que cito parte da seguinte passagem:

«E aquilo que motivou, pelo menos a mim, e muita gente a ir à rua foi uma afirmação de defesa de valores, que são os valores e os princípios em que assentam os regimes democráticos e os regimes dos estados de direito e, em especial, estamos em Portugal, o regime que está PLASMADO na constituição em 76, que saiu do 25 de abril, o que é em concreto liberdade, igualdade, não discriminação, dignidade da pessoa humana, tudo isso...»

Ora tenho-me deparado recorrentemente com a utilização «está plasmado» na constituição, na lei n.º..., etc.

Embora perceba o sentido, agradeço o Vosso esclarecimento, já que o significado que aparece no dicionário da Porto Editora não tem nada a ver com o que, como digo, aparece frequentemente enunciado.

Resposta

A questão em apreço é muito interessante e faz-nos refletir na dinâmica associada à linguagem, sobretudo no que se refere ao sentido das palavras que utilizamos.

Muitas vezes, ao abrirmos o dicionário num determinado verbete, ou entrada, verificamos que, à mesma palavra, são atribuídos diversos sentidos. Até mesmo sentidos figurados, ou seja, que, de alguma forma se distanciam do sentido esperado, ou literal.

A palavra em análise plasmado integra, no exemplo apresentado, uma passiva estativa, em que é usado o verbo estar e o particípio passado (ou o adjetivo correspondente) do verbo plasmar.

Referimos este aspeto, porque numa pesquisa pelo corpus Cetempúblico é possível encontrar frases com o particípio passado, mas também com outras formas verbais e que fogem ao sentido veiculados pelos dicionários consultados.

A alteração de sentido que o consulente regista é, pois, uma alteração que ocorre face aos sentidos previstos do verbo plasmar e não apenas ao seu particípio passado.

No dicionário da Porto Editora, o verbo plasmar é apresentado como transitivo com os seguintes sentidos:

1. modelar em gesso, barro, etc.
2. dar forma a; modelar
3. verbo pronominal: tomar certa forma

Por seu lado, o dicionário Houaiss refere que o verbo plasmar entrou na língua portuguesa no século XIX e não se afasta muito dos sentidos indicados pela Porto Editora. Todavia, apresenta abonações que nos ajudam na interpretação, nem sempre literalmente associada à definição apresentada:

1 – formar ou modelar
2 – dar forma (a alguém, algo ou a si mesmo); organizar-se «Aquela civilização plasmou homens de grande têmpera.»; «plasmou-se na figura materna»; do latim plasmo, as, are, avi, atum: tomar, criar (o homem), dar feição a, plasmar.

Aconselha ainda a consultar o radical plasm(at), onde se indica, entre outras coisas, o seguinte:

«Plasm(at) do grego plasma, atos «obra modelada, figura afeiçoada» com o sentido do verbo plássō, usado na linguagem da Igreja. Daí plasmatio, -onis, com sentido de «criação, formação» ou plasmator, -oris significando criador.»

Se nos centrarmos nas abonações registadas no ponto 2 do dicionário Houaiss, poderemos dizer que é possível atribuir ao verbo outros sentidos além dos registados. Por exemplo, na abonação «Aquela civilização plasmou homens de grande têmpera.» talvez não seja abusivo atribuir ao verbo «plasmou» o sentido de «produziu; criou; gerou», que se aproxima do sentido que o verbo tinha no latim. Por outro lado, na abonação «plasmou-se na figura materna» não nos parece possível identificar um sentido figurado, em que o verbo plasmar-se adquire um sentido de formação moral.

A partir destas duas abonações, talvez possamos concluir que os falantes estão a recriar os sentidos do verbo plasmar, a um ritmo ainda não totalmente absorvido pelos dicionários, e, eventualmente, transitórios.

Todavia, esses sentidos não são todos inovadores e, por vezes, retomam mesmo sentidos mais antigos do verbo. Se analisarmos o excerto do que é dito no verbete «plasm(at», veremos que o sentido de criar que propomos para a abonação «Aquela civilização plasmou homens de grande têmpera.», não é inovadora.

Dito isto, parece-nos que o verbo plasmar está a incluir novos sentidos. O que, a nosso ver, acontece no exemplo em apreço, que repetimos como (1):

(1)    …o regime que está PLASMADO na Constituição em 76.

Analisando o exemplo cremos que é possível atribuir-lhe o sentido de «inscrito/registado»:

(1.1)    …o regime que está inscrito (ou registado) na Constituição em 76.

Analisando alguns exemplos extraídos, como já referimos, do Cetempúblico, parece-nos possível identificar outros sentidos atribuídos ao verbo plasmar:

a)    IMITAR/TRANSMITIR «É também o único filme que consegue plasmar a Paixão de Cristo.»
b)    PROJETAR/IDENTIFICAR/TRANSMITIR «A partitura é uma forma de plasmar uma ideia, não a própria ideia.»
c)    REGISTAR «É tudo isso que eu gostaria de plasmar no papel.»

A ideia central que nos parece importante na análise efetuada é a de que os falantes, no uso que fazem da língua, impõem sentidos novos às palavras, sentidos esses que, a pouco e pouco, vão sendo incorporados nos dicionários, ou vão desaparecendo.

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