DÚVIDAS

A expressão «condição sine qua non»

[Pergunto] se a expressão «condição sine qua non» (ou seu plural «condições sine quibus non»), cuja tradução (não literal) seria «condição indispensável», [será] um pleonasmo chique, pois uma CONDIÇÃO para algo acontecer seria, por natureza, uma circunstância indispensável a tal acontecimento.

[...] Eu não [poderei] classificar a expressão em referência (aprioristicamente) como pleonasmo, pois a palavra condição possui diversas acepções que não remetem à circunstância de indispensável. Perfeito.

A dúvida que persiste é que, numa das acepções, abaixo transcrita, a palavra condição teria o sentido de «indispensáve»l, no dicionário da Infopédia, [...]: «3 – situação ou facto indispensável; cláusula; imposição; exigência.»

Portanto, [...] pergunto: o uso da expressão «condição sine qua non» especificamente no sentido supracitado, no qual a circunstância de indispensável aparece subjacente tanto à palavra condição, quanto ao restante daquela expressão (o trecho sine qua non), configuraria, portanto, pleonasmo?

Pela própria razão ora esboçada, entendo que sim. Estaria certo?

Agradeço a atenção, reiterando os parabéns ao Ciberdúvidas, pelos relevantes serviços prestados ao debate científico!

Resposta

É discutível que «condição sine qua non» constitua um erro por pleonasmo.

Ao substantivo condição não é globalmente inerente a noção de indispensabilidade. É certo que o dicionário da Infopédia lhe atribui a aceção referida pelo consulente («situação ou facto indispensável; cláusula; imposição; exigência»); e o Dicionário Houaiss confirma-a com outra formulação, quando enumera os sentidos deste vocábulo: «antecedente necessário, ou parte dele, sem o qual um evento não ocorre». Sendo assim, dizer ou escrever «condição indispensável» ou, como é o caso em discussão, «condição sine qua non», seria incorrer em redundância. Contudo, dada a polissemia da palavra condição, impõe-se muitas vezes associar-lhe modificadores que indiquem precisamente o que se quer dizer com a palavra; e, sendo assim, a locução latina «sine qua non», empregada como modificador, contribui para a sua especificação semântica.

Por outro lado, a expressão é já antiga na língua portuguesa, com um tom que se pretende enfático, o que explicará a impressão de pleonasmo que se lhe associa:

(1) «Porventura vem longe ainda essa condição sine qua non da nossa felicidade [...].» (Fialho de Almeida, Os Gatos, in Corpus do Português)

(2) «[...] é uma condição sine qua non; antes de todos tu deves saber quem é a escolhida do meu coração.» (Machado de Assis, O segredo de Augusta, idem, ibidem)

Em suma, não trata de verdadeiro erro, pois, por muito que «condição sine qua non» pareça expressão redundante, existe justificação semântica e tradição de uso que lhe dão margem normativa para ser aceite.

 

N.E. (21/09/2019) – Foi substituída a citação apresentada em (2) por outra do mesmo autor. Observe-se também que a expressão «condição sine qua non», não sendo criação do português, é uma adaptação parcial da expressão latina condicio sine qua non, na qual o pronome relativo qua, «a qual», tem por antecedente o substantivo condicio, «fórmula de entendimento entre duas pessoas, condição fixada reciprocamente; arranjo, pacto; condição, convenção, especialmente de casamento» e «partido, situação resultante de um pacto e, em geral, situação, condição», mais tarde confundido com conditio (cf. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, s.v. condição e sine qua non; ver também o se diz em inglês sobre a origem da locução sine qua non na Wikipédia). Esta locução latina teve uso no contexto da escolástica medieval (cf. Online Etymology Dictionary), o que explicará que, mais ou menos adaptada, se encontre noutras línguas europeias, frequentemente associada a um cognato (palavra com a mesma etimologia) de condição: condition sine qua non no francês (Trésor de la Langue Française); condición sine qua non no espanhol (dicionário da Real Academia Espanhola); conditio sine qua non no italiano, que preserva a forma latina (Treccani). Agradece-se ao consultor Luciano Eduardo de Oliveira a chamada de atenção para este aspeto da história da expressão em apreço.

ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de LisboaISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa