DÚVIDAS

Ainda a pronúncia do r

Apesar das numerosas respostas acerca do tema, creio que nenhuma é perfeitamente clara: qual a forma mais correcta, a forma mais «ideal», digamos assim (e não a mais generalizada ou a correspondente à pronúncia-padrão), de se pronunciar o R no início de palavras ou rr em palavras como, por exemplo, carro?

Esta questão surgiu por me terem dito que a pronúncia mais correcta é aquela em que o R é alveolar (vibrante múltipla alveolar) e que aquela em que o R é gutural (vocal gutural) não ser tão correcta, porque se trataria de influência do francês, devido à fixação de indústrias e empresas em Portugal no século XIX.

Além disso, também me foi dito por um senhor que, antigamente (julgo que antes do 25 de Abril), eram repreendidos os alunos na escola dele que pronunciavam «mal» este R.

Desde já um sincero obrigado por explicitarem esta questão.

E parabéns pelo fantástico sítio em que todos podemos esclarecer as nossas dúvidas sobre a nossa língua.

Resposta

No Projecto Diversidade Linguística na Escola Portuguesa, coordenado por Dulce Pereira e desenvolvido pelo Instituto de Linguística Teórica e Computacional, em parceria com a Fundação Calouste Gulbenkian e o Ministério da Educação (2006), é referido que «As palavras rosa e muro possuem ambas a letra <r>. No entanto, apesar de semelhantes, são sons diferentes: o <r> de rosa é um som mais carregado – /R/ – e o de muro mais suave – /r/. É esta diferença que faz com que distingamos as palavras carro e caro. O som mais carregado ou forte (vibrante velar) ocorre em posição inicial e medial de palavra, grafando-se com <r> em início de palavra e com <rr> em posição medial de palavra; o som mais suave ou fraco (vibrante alveolar) ocorre apenas em posição medial de palavra e grafa-se com <r>» (Cd2, p. 13). Note-se que a vibrante múltipla [R] é geralmente descrita como uvular, embora se use também o termo velar (cf. Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1984, p. 45). 

Deste modo, de acordo com a citada passagem do referido projecto, pensado, em grande medida, para alunos que não têm o português como língua materna, existem duas formas de se pronunciar o «r» em português, isto é, como vibrante velar (som formado na região do véu palatino, compatível, portanto, com a "vocal gutural" referida pelo consulente), [R], ou como vibrante alveolar, [ɾ], não sendo feita qualquer referência à vibrante múltipla alveolar.

Sabemos, no entanto, como refere Fernando Venâncio nesta resposta, que continua a ser verificável também a «pronúncia apical, mas múltipla, ou seja, com mais toques, o que lhe dá [ao r] o chamado som rolado, muito usado ainda sobretudo no Norte de Portugal».

Aliás, Maria Helena Mira Mateus e outros, na Gramática da Língua Portuguesa, nesta mesma linha de raciocínio, salientam que «A consoante uvular representada por [R] é a vibrante que se encontra no dialecto-padrão do português europeu, em que a sua produção implica a acção da úvula. Em alguns dialectos existe uma variante dental, a vibrante múltipla que se representa por [r]» (p. 1000).

Leda Bisol (org.), em Introdução a Estudos de Fonologia do Português Brasileiro (EDIPUCRS, 4.ª ed. 2005), citando Jorge Morais Barbosa (Introdução ao Estudo da Fonologia e Morfologia do Português, Coimbra: Almedina, 1994, p. 38), confirma que «a vibrante uvular aparece no português de Portugal, em Lisboa, como uma pronúncia vulgar no final do século XIX». Já «a aparição de r como uma fricativa sonora [ɤ] é assinalada desde 1883, entre os jovens, segundo Gonçalves Viana, Estudos de Fonética Portuguesa, 1973». Antes disso, o som r era «somente articulado como uma vibrante alveolar múltipla [r], segundo as gramáticas» (p. 218).

Indo de certa forma ao encontro das palavras do prezado consulente, pude saber1 que, na zona de Coimbra, há cerca de trinta/quarenta anos, os falantes assinalavam o [R] uvular como pronúncia intrusiva, porque a articulação generalizada era [r] (vibrante alveolar múltipla). Assim, é possível que alguns professores da referida região tenham tido algum excesso de zelo. Porém, actualmente, com a evolução linguística registada, tal facto encontrar-se-á ultrapassado, porque habitantes dessa zona, na casa dos 30 anos, já usam também o [R] (vibrante uvular). Na zona de Lisboa, nunca dei conta de que o [R] fosse corrigido na escola.

1 Comunicação pessoal de Carlos Rocha.

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