DÚVIDAS

O pronome quem e as orações relativas livres

A regra de que sujeito oracional deve seguir a concordância na terceira pessoa do singular se aplica no caso de orações relativas livres?

Ex.: «Quem acredita sempre alcança»... (está OK)... Mas «Quem acredita sou eu» parece melhor do que «Quem acredita é eu». Há gramáticas que afirmam que numa frase como «Sou eu quem acredita» o quem manteria uma relação anafórica com eu... Mas eu vejo com reservas o quem como um pronome relativo-anafórico na posição sujeito, pois uma frase igual à que eu vou mencionar, apesar de comum no Brasil, parece deveras estranha: «Ela é a pessoa quem fez isso.» O que me leva a supor que as frases «Sou eu quem acredita» e «Quem acredita sou eu» possuem a mesma estrutura sintática, com a subordinada constituindo um sujeito oracional através de uma oração relativa livre; e como sujeito oracional nessa condição de ser uma oração relativa livre, o verbo da oração principal apresentaria a particularidade de poder concordar com um predicativo. Na verdade, parece-me que o pronome quem introduz orações limítrofes entre a função de sujeito simples e oracional, pois, numa frase como «Aquele que acredita sempre alcança», o sujeito é simples, e só se torna oracional, no caso do uso do quem, justamente porque o quem pode equivaler, por si mesmo, à forma «aquele que».

Agora, apresentando uma frase um pouco diferente de uma anteriormente mencionada, a oração principal dela parece apresentar um atributo — ou predicativo — mas sem um sujeito do ponto de vista sintático: «Sou eu que acredito nisso.» O eu aqui não me parece sujeito e, sim, um atributo semelhante aos que aparecem nas orações sem sujeito que acontecem com o verbo ser. Apesar de que, do ponto de vista lógico (não sintático), sabe-se quem é o sujeito. E nesta última oração, do ponto de vista sintático, a subordinada me parece, sim, uma subordinada adjetiva.

Outra coisa que eu penso como curiosa é o fato de no Brasil ser extremamente comum dizer frases como «Eu imagino de quem falas», ou seja: uma subordinada relativa livre, na posição de objeto direto, mas introduzida pela preposição que é regida pelo verbo da subordinada... Li, numa tese de mestrado produzida em Portugal, que sentenças como essas são extremamente marginais em Portugal...

Gostaria, se possível, da opinião de Carlos Rocha sobre minhas indagações.

Resposta

1. No primeiro dos casos apresentados, deve ter-se em conta que a frase «Quem acredita sou eu» não pode, em termos de concordância verbal, ser analisada como «Quem acredita sempre alcança»: nesta, a oração relativa é sujeito de um verbo usado intransitivamente (alcançar), enquanto aquela constitui uma frase equativa ou identificacional, a qual permite ao verbo da oração subordinante (ser) concordar com o predicativo do sujeito (daí, a gramaticalidade de «Isso são ninharias», apesar de «isso» comportar-se como singular e ter a função de sujeito).

2. O pronome quem só pode ser anafórico, isto é, só pode ter antecedente, se for precedido de preposição (cf. M.ª H. Mira Mateus et al., Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, Editorial Caminho, 2003, pág. 663): «esta é a pessoa de quem te falei». Deste modo, quem não pode ser usado como sujeito ou complemento directo de uma relativa com antecedente: é, portanto, impossível — pelo menos, no âmbito da norma — aceitar sequências como *«Ela é a pessoa quem fez isso» ou «Ela é a pessoa quem encontrei ontem». O pronome quem só pode ser usado como sujeito ou complemento directo de relativas livres, isto é, de relativas sem antecedente expresso: «Quem espera sempre alcança»; «Quem vi ontem no restaurante passou por ti agora».

3. Assinale-se, contudo, que estas orações relativas livres que participam em frases equativas se agrupam com outras construções para entrar naquilo que a descrição linguística designa como construções clivadas. A frase «Sou eu que acredito nisso» é um caso de construção clivada, que já foi comentada noutras respostas anteriores.

4. Quanto a frases como «(Eu) Imagino de quem falas» e a sua distribuição pelas variedades do português, verifica-se, pelo menos em português europeu, a tendência, se não mesmo a necessidade, de ocorrer um antecedente para pronomes relativos preposicionados que sejam, por um lado, complementos do verbo da oração relativa e, por outro, introduzam essa oração relativa no contexto da sua subordinante:

1) ? «Imagino do que ele gosta/fala.»

2) OK «Imagino aquilo de que ele gosta/fala.»

3) ? «Imagino de quem falas.»

4) OK «Imagino a pessoa de que/quem falas.»

As dúvidas sobre a gramaticalidade de 1) e 3) parecem decorrer da significação do verbo imaginar. Se o verbo imaginar for entendido como «adivinhar» ou «pensar saber», a oração subordinada é interpretada como interrogativa indirecta, e as frases 1) e 3) tornam-se aceitáveis; contudo, quando o mesmo verbo é sinónimo de visualizar, a oração subordinada é encarada como relativa livre, determinando a agramaticalidade das frases.

Compreendem-se melhor as restrições de imaginar, no sentido de «visualizar», a partir da leitura de um estudo de Telmo Móia, A Sintaxe das Orações Relativas sem Antecedente Expresso (pág. 35), no qual se dão exemplos da incompatibilidade de conhecer e falar com uma relativa livre introduzida pelo relativo quem preposicionado (exemplos da fonte consultada):

5) *«O Paulo conhece a quem eu dei o livro.»

6) ?«O Paulo falou a quem eu dei o livro da sua viagem a África.»

Paralelo ao emprego de imaginar como «pensar saber», salienta-se o de ver (exemplos de Móia, op. cit., pág. 29):

7) «O professor viu quem fez o trabalho.»

8) «O professor viu o Paulo.»

Em 8), ocorre «o Paulo», sintagma nominal simples que substitui «quem fez o trabalho», em 7); em ambos os exemplos, o verbo ver é equivalente a «reparar em». Mas, se o pronome quem fizer parte de um constituinte preposicionado (oblíquo), apenas fica disponível a interpretação da subordinada como interrogativa indire{#c|}ta, e o ver significa «descobrir», «perceber» (exemplo de Móia, op. cit., pág. 28):

9) «O professor viu com quem o Luís esteve a conversar.»

Por outras palavras, em função do seu significado, ver selecciona ora uma relativa livre, podendo ser introduzida por quem sujeito ou objecto directo, se significar «reparar em», ora uma interrogativa indirecta, se tiver por sinónimo descobrir.

Em suma, as frases 1) e 3) são aceitáveis à luz de uma de duas interpretações possíveis de imaginar, as quais se verificam tanto no português brasileiro como no português europeu.

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