Um livro que se apresenta como uma nova maneira de contar uma história, neste caso, a da língua portuguesa. Do princípio ao fim, o estilo pode surpreender, porque o tema era, até há poucos anos, dos mais sisudos, pelo menos, para quem o vê de fora dos círculos académicos; mas não dececiona quem já conhece este autor e procura uma abordagem irónica e não raro provocatória. Para além disso, trata-se de discutir uma dimensão fascinante – a da língua –, geralmente decisiva para qualquer identidade nacional, pelo menos, em muito pontos do globo desde o século XIX. Na verdade, falar da origem e elaboração do português como língua de expressão de arte literária e poder político-administrativo acaba muitas vezes por instaurar uma narrativa muito mais mítica do que a extraordinária estabilidade da fronteira política de Portugal: é que a língua que sempre foi tida como portuguesa não deixa de conhecer, afinal, linhas e pontos menos definidos, como é próprio da construção de um país e da(s) sua(s) cultura(s)1.
O livro compreende uma extensa introdução – 31 páginas –, numa promessa que prepara o leitor para as revelações que se desenrolam depois em 15 capítulos distribuídos por quatro partes. A primeira parte levanta o problema de identidade que suscita a discussão das origens do português, com uma proposta que talvez ainda encontre alguma reserva no discurso menos especializado que é produzido em Portugal sobre os primórdios da língua. A preponderância da área galaica – e mais da parte que hoje constitui o território da Galiza – é até ao século XIII uma realidade que, como aponta o autor, não teve a devida atenção por parte da investigação filológica e linguística portuguesa e mesmo brasileira, apesar dos protestos mais ou menos discretos dos especialistas galegos. Na segunda parte, F. Venâncio retoma a perspetiva que, partindo de Ivo Castro, alcançou maior desenvolvimento no trabalho de Esperança Cardeira, o qual dá realce aos finais do século XIV e a todo o século XV como uma transição de decidida elaboração da língua, pela plena difusão e consolidação de tendências alheias – a convergência das terminações nasais no ditongo -ão é um caso – à língua galega literária de períodos anteriores. A esta linha de interpretação da história da língua, F. Venâncio junta agora o enfoque no léxico, que, segundo este autor, outros não souberam dar. Desta crítica, não exime nomes como Serafim da Silva Neto (1917-1960) ou Virgínia Mattos e Silva (1940-2012). A terceira parte é dedicada às relações entre o português e o galego nos últimos dois séculos, permeadas de equívocos e desfasamentos. Finalmente, a quarta parte avalia tendências atuais do português, incidindo, em particular, no discurso prescritivista, à volta da língua e das suas normas2.
A originalidade da obra – que é também a dos vários artigos do autor que a precederam– está, sem dúvida, em grande parte na sua abordagem lexical3. Com profusão de exemplos, F. Venâncio mostra como o castelhano de corte é o grande veículo de cultura e, paradoxalmente, de relatinização entre o séculos XV e XVII, num processo que Paul Teyssier (1915-2002) já tinha explorado por intermédio da linguagem vicentina (cf. A Língua de Gil Vicente) e que marcou o português com o aparecimento de numerosas palavras divergentes (dobletes; o caso de cavaleiro/cavalheiro é paradigmático)4. A história que é contada quase com indignação e escândalo, a do contacto com o castelhano, aqui e ali figurado como uma fraqueza pecaminosa e autoinfligida5, tem o reverso mais risonho de dar a ver essas fases da vida do idioma como provas de maturidade e capacidade dos seus falantes de a reinventarem.
Assim Nasceu uma Língua é, portanto, um livro que vem reforçar a necessidade e o desejo de repensar a história da língua portuguesa. A arte estilística e a irrequietude intelectual de Fernando Venâncio aliadas à originalidade da sua perspetiva, com foco na diacronia do léxico, permitem dar realce a uma ideia de língua nacional que se vai afirmando em Portugal, tanto no mundo académico como, mais recentemente, já no domínio da divulgação (para que tanto tem contribuído Marco Neves): a da língua a que chamamos portuguesa ter uma história fascinante, bastante mais antiga do que vulgarmente se julga e com certeza muito mais aberta à diversidade linguística, étnica e cultural que, nem sempre de forma pacífica, caracterizavam o universo peninsular tanto na Idade Média como nos primeiros tempos do Renascimento.
1 Ver Onésimo Teotónio de Almeida, A Obsessão da Portugalidade (Lisboa, Quetzal Editores, 2017), que Fernando Venâncio também refere na discussão que desenvolve no livro aqui apresentado.
2 São fortes (se não demolidoras) as críticas de Fernando Venâncio a vários dos guias de uso da língua publicados em Portugal na última década. Não menos contundente é a maneira como é julgado o reintegracionismo linguístico galego, sobretudo a corrente vincadamente lusista. Sobre a receção na Galiza destes comentários desfavoráveis do autor, leia-se, de Joám Lopes Facal, "Pequena crónica de um encontro singular. Para Fernando Venâncio", artigo publicado no jornal digital Praza em 10/01/2020 [*].
3 Já que a abordagem é de índole lexical e lexicológica, não virá de todo a despropósito lembrar a onomástica e, dentro desta, a toponímia inconfundível da chamada magna Galécia, ou seja, na área dialetológica que se estende das Astúrias ocidentais ao vale do Vouga.
4 São ideias que F. Venâncio já tinha desenvolvido antes, noutros estudos seus, todos indicados na bibliografia do livro. Ver também "Originalidades da língua portuguesa", "O galego-português existe?", "Pontes sólidas", "Saramago, o ibérico".
5 Fala-se mesmo de «desfiguramento» pelo espanhol (no título do cap. 12), embora esta expressão se aplique ao português que se escreve em certos setores do reintegracionismo.
[* N.E. (27/01/2020) – Ainda sobre a receção desta obra entre os reintegracionistas galegos, ler, de Valentim Fagim, "Escolhendo cereijas em 'Assim Nasceu uma Língua'" (Praza, 26/01/2020).]
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