Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Com sujeito constituído por substantivo inanimado, fala-se a voz passiva das seguintes formas:

(1) a porta se abriu

ou

(2) a porta abriu;

(3) a loja abriu cedo

e

(3) a loja se abriu cedo.

Percebo que, quando nos referimos a objetos, o uso da partícula se é mais comum. Contudo, quando nos referimos a estabelecimentos, o uso da partícula se é menos comum. Há lógica? No que se refere a esse assunto, as duas formas são gramaticais? Elas têm diferença de significado? Prefere-se uma a outra na fala coloquial? Quais são as implicações do uso ou não uso do se em tais casos?

Obrigado pela atenção.

Resposta:

As opções apresentadas pelo consulente são todas corretas. A diferença está na opção por uma construção passiva com -se impessoal ou por um uso intransitivo do verbo abrir.

As frases apresentadas pelo consulente são próximas das construções impessoais ou de sujeito indeterminado, que, em português, se podem realizar como1:

(i) frases com sujeito nulo e verbo na 3.ª pessoa do plural:

    (1) «Abriram a porta.»

    (2) «Abriram a loja cedo.»

(ii) frases com -se impessoal:

    (3) «Abriu-se a porta.»

    (4) «Abriu-se a loja cedo.»

(iii) frases passivas pronominais:

    (5) «Abriram-se as portas.»

    (6) «Abriram-se as lojas.»

Assim, em (i), o sujeito não está expresso na frase, mas poderá ser recuperado pelo contexto. A diferença entre (ii) e (iii) reside no facto de o sujeito semântico de (ii) ser equivalente a alguém. Em (iii) o sujeito é portas ou lojas2. Embora estes termos não desempenham a função de agente do evento descrito, tem a função de sujeito da frase passiva, desempenhando a função semântica de paciente («A porta / a loja foi aberta por alguém»).

Pode optar-se por usar o verbo abrir como impessoal, o que implica que ...

<i>Respirar</i> e  <i>joelho</i>
As duas palavras marcantes na morte do afro-americano George Floyd

As palavras respirar joelho abordadas neste apontamento de Carla Marques  difundida no programa Páginas de Português, na Antena 2, no dia 14 de junho de 2020  –  a propósito da  morte brutal  do afro-americano George Floyd por um polícia, nos EUA.

Como se fosse um filme
As metáforas da pandemia (IV)

No último texto sobre a presença da metáfora nas referências à realidade da pandemia do covid-19Carla Marques trata o desenvolvimento do campo conceptual de cinema que permite perspetivar o vírus como «um monstro» e os seres humanos como figuras de cinema: astronautas, extraterrestres ou detetives. Sempre vistos como os bons da fita que lutam contra o mal ou como os heróis sem capa, mas com máscara. 

Pergunta:

Na oração «tudo era alegria para ela», o termo «para ela» exerce função sintática de objeto indireto ou de complemento nominal?

Há divergências entre algumas gramáticas!

Na expectativa, agradeço-lhes!

Resposta:

O constituinte em apreço tem a função de adjunto adverbial (modificador).

Para analisarmos a função do constituinte «para ela», teremos de o integrar na frase a que pertence porque só aí se percebe a relação que estabelece com outros constituintes.

Por um lado, e antes de mais, é importante verificar que a frase apresentada é copulativa, o que tem desde logo uma importante consequência:  neste caso, não poderemos falar da presença de um complemento indireto porque só os verbos plenos, ou seja, que não são auxiliares ou copulativos, selecionam complementos.

Por outro lado, para estarmos perante um complemento nominal, este teria de ser argumento de um constituinte, o que o tornaria essencial para a frase. É o que acontece na frase (1):

(1) «A viagem para Espanha correu bem.»

Neste caso, o constituinte «para Espanha» é complemento nominal (complemento de nome) de viagem, o que se verifica pelo facto de este sintagma nominal manter as relações do sintagma verbal de origem («viajar para Espanha» = «a ...

Pergunta:

Enquanto pesquisava critérios de diferenciação entre orações coordenadas explicativas (OCE) e orações subordinadas adverbiais causais (OSAC), verifiquei, em uma de suas respostas no campo Consultório, que os senhores classificaram a oração «Ela estudava muito, pois desejava ser aprovada» como OCE.

Parece-me irresistível não ver nela uma relação de causa (desejar de ser aprovada) e efeito (estudar muito).

Por que ela é classificada como OCE? E como eu poderia reescrevê-la de modo a que ela se torne uma OSAC?

Por exemplo, caso o verbo “desejar” estivesse no pretérito mais-que-perfeito do indicativo (indicando que a ação de “desejar” é anterior a de “estudar”), a oração seria SAC?

Parabéns pelo excelente trabalho!

Resposta:

Quando estamos perante uma frase que inclui uma oração subordinada adverbial causal, tipicamente, a segunda oração descreve uma causa real:

(1) «O João partiu a perna porque caiu.» (O facto de ter caído tem como consequência ter partido a perna)

Nesta frase, cair corresponde à situação apresentada como causa real que tem como consequência «partir a perna».

Numa frase que inclua uma oração coordenada explicativa, a segunda oração não apresenta uma causa real para a situação enunciada na primeira oração, mas antes uma causa a qual também não é uma consequência da segunda. Trata-se, antes, de uma causa de dicto. Veja-se (2):

(2) «Vai chover, pois o céu esta muito escuro.» = «*O facto de o céu estar muito escuro não tem como consequência chover.»

A frase (2) apresenta uma justificação para o enunciado apresentado na primeira oração, pelo que poderá ter a seguinte paráfrase:

(2a) «Afirmo que vai chover, e justifico a minha afirmação com o facto de o céu estar muito escuro.»

Esta paráfrase não é possível em (1):

(1a) «*Afirmo que o João partiu a perna, e justifico a minha afirmação com o facto de ele ter caído

Acresce que a oração coordenada explicativa surge sempre em final de frase enquanto a subordinada causal pode ser colocada no início ou no fim da frase:

(1b) «Porque caiu, o João partiu a perna.»

(2b) «*Pois o céu está muito escuro, vai chover.»

No plano da temporalidade, quando a causa é efetiva, a situação apresentada na oração causal é temporalmente anterior à situação descrita na oração principal, enq...