Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Na frase «ele mora em casa com a mãe», é correto assumir que contém dois complementos oblíquos ou há um complemento oblíquo (CO) e um modificador do grupo verbal (GV)?

Neste caso, como determinar o CO e o modificador, uma vez que qualquer um pode ser utilizado para termos uma frase gramatical, não sendo, para isso, necessário o uso dos dois?

Grata pela atenção.

Resposta:

Sem um contexto que esclareça a intenção do locutor a frase é ambígua quanto ao seu sentido de base. Desta forma, qualquer um dos constituintes poderá desempenhar a função de complemento oblíquo. A identificação desta função está diretamente dependente da significação do verbo e da situação descrita na pergunta1.

O verbo morar é considerado um verbo locativo porque inclui o traço [+ locativo] e, habitualmente, seleciona um constituinte que refere um lugar onde se localiza o sujeito, como em (1):

(1) «O João mora em Leiria.»

Nesta perspetiva, por defeito, o constituinte «em casa» será o complemento oblíquo do verbo, desempenhando o constituinte «com a mãe» a função de modificador do grupo verbal.

Todavia, o verbo morar poderá ser utilizado com o sentido de ‘compartilhar moradia; viver com’. Com este uso, o verbo rege a preposição com, como se verifica em (2):

(2) «O João mora com os amigos.»

Se, na frase apresentada pela consulente, o verbo morar for usado com este sentido de base, consideraremos que o constituinte «com a mãe» desempenha a função de complemento oblíquo, ao passo que «em casa» passará a ser o modificador do grupo verbal.

Em síntese, importa determinar se o verbo se completa com um argumento locativo, denotador de localização espacial, ou se completa o seu sentido com um argumento de companhia. Será esta interpretação que determinará a identificação das funções sintáticas desempenhadas pelos constituintes que acompanham o verbo.

 

Pergunta:

Apesar de já ter lido e ouvido várias explicações, ainda me surgem dúvidas quando se trata de distinguir o complemento oblíquo e o modificador em determinados contextos.

Na frase «O julgamento das personagens prolongou-se por várias cenas», o constituinte «por várias cenas» será complemento oblíquo?

Eu entendo-o como modificador, já que não me parece ser indispensável ao verbo.

Ainda na frase «Os cavaleiros chegaram da guerra», o constituinte «da guerra» será complemento oblíquo?

Obrigada.

Resposta:

Ambos os constituintes desempenham a função de complemento oblíquo.

A presença de complemento oblíquo é definida pela natureza do verbo que seleciona esse argumento. Note-se que há situações que em o complemento oblíquo pode ser elidido da frase sem comprometer a sua gramaticalidade porque é recuperável pelo contexto ou porque o verbo permite optar por uma formulação mais genérica.

Nos casos apresentados, a forma mais eficaz de identificar as funções desempenhadas pelos constituintes que acompanham os verbos é a realização de testes de natureza sintática. Entre estes, utilizarei dois: o teste pergunta-resposta (ver também esta resposta) e o teste da clivagem (ver esta resposta). Ambos pretendem verificar se é possível afastar o constituinte do verbo ou se este afastamento determina uma construção agramatical .

(i) Teste pergunta-resposta:

                (1) P: «O que é que o julgamento das personagens fez por várias cenas?»

      R: «*Prolongou-se.»

      P: «O que é que o julgamento das personagens fez?»

Pergunta:

Gostaria de saber se a vírgula é obrigatória, facultativa ou proibida quando o período é iniciado pela oração subordinada substantiva?

Grato pela resposta.

Resposta:

O âmbito da questão colocada não é muito claro.

Procurando responder ao que supomos ser a essência da dúvida colocada, poderemos afirmar que, em início de frase, é possível identificar a presença de uma oração subordinada substantiva relativa:

(1) «Quem me conheça sabe que adoro ler.»

ou de uma oração subordinada substantiva completiva:

(2) «Que o João chegue atrasado não nos interessa minimamente.»

Nestes dois casos não se usa vírgula, uma vez que esta estaria a separar o sujeito do verbo.

Como afirmam Cunha e Cintra, «os termos essenciais e integrantes da oração ligam-se uns com os outros sem pausa; não podem, assim, ser separados por vírgula. Esta é a razão por que não é admissível o uso da vírgula entre uma oração subordinada substantiva e a sua principal» (Nova Gramática do Português Contemporâneo. Ed. Sá da Costa, pp. 645 – 646).

Não obstante, alguns autores consideram que é admissível a utilização de uma vírgula nestes casos por razões estilísticas (de ênfase do constituinte, por exemplo) ou para desambiguar uma frase cuja interpretação seja mais complexa. Nestes casos estamos, portanto, perante vírgulas opcionais. (veja-se esta resposta)

Disponha sempre!

Pergunta:

Começo por agradecer o vosso inestimável serviço e importância no seio da comunidade linguística. São uma fiabilíssima fonte de referência a que recorro muitas vezes na realização do meu trabalho. Um fortíssimo bem-haja e com toda a saúde.

Passo então ao que me leva a colocar-lhes uma questão. No decurso de uma revisão a um colega tradutor, deparou-se-me a seguinte frase:

a ) «Quando a Alliance dava os primeiros passos, o primeiro desafio enfrentado foi a criação de alguns grupos de trabalho para estabelecer o padrão e trabalhar nos detalhes técnicos do protocolo.»

De imediato, algo me pareceu "soar" mal nos tempos verbais usados e procurei explicações junto do vosso/nosso site. Encontrei assim o seguinte artigo "Pretérito perfeito vs. pretérito imperfeito",  que me elucidou quanto à correção dos tempos verbais usados.

No entanto, não consigo deixar de pensar que as seguintes variantes se me afiguram melhores. São elas:

b) «Quando a Alliance deu os primeiros passos, o primeiro desafio enfrentado foi a criação de alguns grupos de trabalho para estabelecer o padrão e trabalhar nos detalhes técnicos do protocolo.»

Ou

c) «Quando a Alliance estava a dar os primeiros passos, o primeiro desafio enfrentado foi a criação de alguns grupos de trabalho para estabelecer o padrão e trabalhar nos detalhes técnicos do protocolo.»

Assim, peço a vossa ajuda relativamente a 2 questões:

1. Entender se há de facto algo de incorreto na tradução original a).

2. Saber as diferenças entre as frases a), b) e c), se é que existem.

Muito obrigada desde já a toda a equipa!

Resposta:

As frases a) e c) estão corretas, enquanto a frase b) parece menos ajustada ao valor aspetual que se pretenderá expressar.  

A questão colocada relaciona-se, desta forma, com a expressão da aspetualidade na frase.

A seleção de tempos do passado para descrever a situação aponta para a sua localização num eixo temporal anterior ao momento da enunciação. No entanto, a opção pelo pretérito perfeito ou pelo pretérito imperfeito implica valores aspetuais distintos. Assim, e considerando as frases apresentadas, a opção pelo imperfeito do indicativo na oração subordinada adverbial temporal apresenta a situação na sua progressão, ou seja, indica que a «ação de dar os primeiros passos» está a decorrer:

(1) «Quando a Alliance dava os primeiros passos, o primeiro desafio enfrentado foi a criação de alguns grupos de trabalho para estabelecer o padrão e trabalhar nos detalhes técnicos do protocolo.»

Nesta frase, a ação de «dar os primeiros passos» é perspetivada como estando a desenrolar-se quando teve lugar a criação de alguns grupos de trabalho. Esta última situação é descrita como estando concluída, ao passo que não se expressa a conclusão da situação descrita na oração subordinada.

Na frase (2), todas as situações são localizadas no passado e são descritas como estando concluídas:

(2) «Quando a Alliance deu os primeiros passos, o primeiro desafio enfrentado foi a criação de alguns grupos de trabalho para estabelecer o padrão e trabalhar nos detalhes técnicos do protocolo.»

A meu ver, esta opção será menos adequada porque a situação «dar os primeiros passos» compreende um conjunto de ações desenvolvidas pela entidade, entre as quais se encontr...

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