Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

«Fiz o bolo conforme a receita.»

Na frase acima,«conforme a receita» é uma locução adverbial?

Se sim, é possível existir locução adverbial iniciada por conjunção? A palavra conforme é uma conjunção?

Obrigado!

Resposta:

Na frase apresentada pelo consulente, conforme é usado como uma preposição1 que marca uma relação semântica de correlação ou de correspondência2. Note-se que conforme pode ser usado como conjunção nas situações em que introduz uma oração subordinada adverbial conformativa:

(1) «Farei conforme tu me ordenaste.»

O constituinte «conforme a receita» tem a função sintática de complemento oblíquo ou de adjunto adverbial, comportando-se como um constituinte de natureza adverbial.

Disponha sempre.  

 

1. Raposo e Xavier consideram conforme uma preposição atípica, «que se afasta de algum modo do comportamento canónico dos restantes membros da classe» (Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 1562). Bechara, por seu turno, considera que se trata de uma preposição acidental, pois integra o grupo de palavras «que, perdendo seu valor e emprego primitivos, passaram a funcionar como preposições» (Moderna Gramática Portuguesa. Ed. Nova Fronteira, p. 254).

2. Raposo et al., Ibidem.

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Pergunta:

Nos verbos que estão no imperativo (ex: «fique/fica sentado, Lucas!») há voz ativa ?

Grato pela resposta.

Resposta:

A frase imperativa só pode ser enunciada na forma ativa, o que se compreende pelo facto de este modo estar associado à expressão de uma ordem (que corresponde a um ato ilocutório diretivo). Acresce que «em contextos particulares pode[m], no entanto, ter significados aparentados com informações, instruções, convites, súplicas, etc., para os quais contribui também a prosódia da frase»1.

O imperativo pode surgir na afirmativa:

(1) «Come o bolo!»

ou na negativa, situações em que se fala de imperativo negativo:

(2) «Não comas o bolo!»

No caso do imperativo negativo, as formas usadas são as equivalentes do presente do conjuntivo2

O caso apresentado pelo consulente não é uma forma passiva, até porque o auxiliar da passiva é tipicamente o verbo ser e não o verbo ficar, mas, antes, uma construção composta por verbo acompanhado de predicativo do sujeito. Esta situação é semelhante a frases imperativas como:

(3) «Sê discreto!»

(4) «Continua calado!»

(5) «Fica em casa.»

Disponha sempre!

 

1. Oliveira in Mira Mateus et al., Gramática da Língua portuguesa. Caminho, pp. 254.255.

2. Cunha e Cintra,

Pergunta:

A conjunção aditiva e apresenta valores semânticos, como adversidade («mas», porém»), conclusão /consequência («portanto, por isso, então»). Além desses, alguns estudiosos dizem que o e pode apresentar:

1) Sequenciação temporal, quando ligar dois eventos sucessivos: «depois da discussão, Maria fechou o rosto e João foi para o quarto em seguida» (Fernando Pestana).

2) Finalidade: «Ia telefonar-lhe e (=para) desejar-lhe parabéns.»

3)) Condicional: segundo a estudiosa Cilene Rodrigues (PUC-RJ) no artigo "No escape from syntax! das (in)subordinadas condicionais entonacionais", A) «Você publica este artigo, e sua carreira vai para o brejo» seria equivalente a frase B) «Se você publicar este artigo, a sua carreira vai para o brejo.»

#1) Gostaria de saber se estes três valores semânticos já são aceitos pelos gramáticos?

#2) E se há algum outro valor semântico dessa conjunção e além desses ?

#3) Com relação ao sentido de condicional, vocês concordam?

No Google acadêmico só achei esse trabalho sobre o assunto. Nunca tinha lido sobre esse valor condicional.

Grato pela resposta. Parabéns pelo belo trabalho de vocês.

Resposta:

A conjunção e é, do ponto de vista da pertença a uma classe gramatical, uma conjunção coordenativa copulativa. Quando coordena dois constituintes, esta conjunção atribui ao nexo criado um determinado valor. Esta é uma perspetiva semântico-pragmática que tem sido descrita por diferentes trabalhos na área da linguística e foi também tratada por diferentes gramáticos.  

A título de exemplo, Inês Duarte aborda esta questão no âmbito do tratamento dos processos de coesão interfrásica, enumerando vários valores da conexão assegurada por e: listagem enumerativa, listagem aditiva, confirmação, sequência temporal, contraste concessivo, contraste antitético, disjunção e inferência (cf. in Mira Mateus et al., Gramática da Língua Portuguesa. Caminho, pp. 97-98).  

Já Matos e Raposo apresentam os seguintes valores semânticos da coordenação copulativa: aditivo, adversativo, conclusivo, condicional e de sequencialidade temporal (cf. Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 1787-1794).

Em síntese, e respondendo às questões colocadas, fica claro que os valores semânticos são considerados pelos gramáticos. Existem diversos valores que poderão ser identificados, como se confirma pelas propostas enunciadas atrás1.

Relativamente ao valor condicional, é um facto que as orações copulativas com a conjunção e podem expressar um valor de condição, como se exemplifica em (1):

(1) «Não trabalhas, e fico zangado!»